Page 91 - Fernando Pessoa
P. 91

132                 FERNANDO  PESSOA

                       aqui  mesmo, entre o que  sou e o  que  perdi,  no  ântero olhar
                       de mim  que sou eu...
                            Que  sei?  Que  procuro?  Que  sinto?  Que  pediria  se  ti-
                       vesse que pedir?




                            Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra —
                       ou, antes, de luz e de menos luz — a manhã desata-se sobre a
                       cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos
                       muros e dos  telhados  que  a  luz do  alto  se  desprende  —  não
                       deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
                            Sinto,  ao  senti-la,  uma  grande  esperança;  mas  reco-
                       nheço que a  esperança  é  literária.  Manhã,  primavera,  espe-
                       rança — estão ligados em música pela mesma intenção meló-
                       dica;  estão  ligados  na  alma  pela  mesma  memória  de  uma
                       igual  intenção.  Não:  se  a  mim  mesmo  observo,  como  ob-
                       servo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que
                       este  dia  acabe,  como  todos  os  dias.  A  razão  também  vê  a
                       aurora.  A esperança que pus nela,  se a houve não  foi minha:
                       foi  a dos homens que vivem  a  hora  que  passa,  e  a  quem  en-
                       carnei sem querer, o entendimento exterior neste momento.
                            Esperar?  Que tenho eu  que  espere?  O  dia  não  me  pro-
                       mete  mais  que  o  dia,  e  eu  sei  que  ele  tem  decurso  e  fim.
                       A  luz  anima-me  mas  não  me  melhora,  pois  [?]  sairei  de
                       aqui como para  aqui  vim  —  mais  velho  em  horas,  mais  ale-
                       gre uma sensação, mais triste um pensamento.  No que nasce
                       tanto  podemos  sentir  o  que  nasce  como  pensar  o  que  há  de
                       morrer.  Agora,  à  luz  ampla  e  alta,  a  paisagem  da  cidade  é
                       como de um campo de casas  — é natural, é  extensa,  é  com-
                        binada.  Mas,  ainda  no  ver  disto  tudo,  poderei  eu  esquecer
                       que existo?  A minha  consciência  da  cidade  é,  por  dentro,  a
                       minha consciência de mim.
                            Lembro-me  de  repente  de  quando  era  criança,  e  via,
                       como hoje não posso ver,  a  manhã  raiar  sobre  a  cidade.  Ela
                       então não raiava para mim, mas para a vida,  porque então eu
   86   87   88   89   90   91   92   93   94   95   96