Page 91 - Fernando Pessoa
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aqui mesmo, entre o que sou e o que perdi, no ântero olhar
de mim que sou eu...
Que sei? Que procuro? Que sinto? Que pediria se ti-
vesse que pedir?
Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra —
ou, antes, de luz e de menos luz — a manhã desata-se sobre a
cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos
muros e dos telhados que a luz do alto se desprende — não
deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reco-
nheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, espe-
rança — estão ligados em música pela mesma intenção meló-
dica; estão ligados na alma pela mesma memória de uma
igual intenção. Não: se a mim mesmo observo, como ob-
servo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que
este dia acabe, como todos os dias. A razão também vê a
aurora. A esperança que pus nela, se a houve não foi minha:
foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a quem en-
carnei sem querer, o entendimento exterior neste momento.
Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me pro-
mete mais que o dia, e eu sei que ele tem decurso e fim.
A luz anima-me mas não me melhora, pois [?] sairei de
aqui como para aqui vim — mais velho em horas, mais ale-
gre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce
tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que há de
morrer. Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é
como de um campo de casas — é natural, é extensa, é com-
binada. Mas, ainda no ver disto tudo, poderei eu esquecer
que existo? A minha consciência da cidade é, por dentro, a
minha consciência de mim.
Lembro-me de repente de quando era criança, e via,
como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela
então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu