Page 89 - Fernando Pessoa
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FERNANDO  PESSOA

                          Nem   era,  em  torno  dos contornos  das  árvores,  ou  das
                      esquinas dos edifícios,  aquele esbater de recortes ou de ares-
                      tas, que a verdadeira névoa traz, estagnando, ou o verdadeiro
                      fumo,  natural,  entreabre e entrescurece.  Era  como  se  cada
                      coisa projetasse de si uma sombra vagamente diurna, em to-
                      dos os sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem
                      lugar de projeção que a justificasse como visível.
                           Nem  visível  era:  era  como  um  começo  de  ir  a  ver-se
                      qualquer coisa,  mas em  toda a parte por igual,  como se o a
                      revelar hesitasse em ser aparecido.
                           E que  sentimento  havia?  A  impossibilidade de o ter, o
                      coração desfeito na cabeça, os sentimentos confundidos,  um
                      torpor  da  existência  desperta,  um  apurar  de  qualquer  coisa
                      anímica como o ouvido,  para uma  revelação definitiva,  inú-
                      til,  sempre a aparecer já,  como a  verdade,  sempre,  como  a
                      verdade, gêmea de nunca aparecer.
                           Até a vontade de  dormir,  que  lembra  ao  pensamento,
                      desapartei  [?],  por  parecer  um  esforço  o  mero  bocejo  de  a
                      ter.  Até  deixar  de  ver  faz  doer  os  olhos.  E,  na  abdicação
                      incolor da alma inteira, só os ruídos exteriores, longe,  são o
                      mundo impossível que ainda existe.
                           Ah,  outro  mundo,  outras  coisas,  outra  alma  com  que
                      senti-las, outro pensamento com que saber dessa alma! Tudo,
                      até o tédio, menos este esfumar comum da alma e das coisas,
                      este desamparo azulado da indefinição de tudo!




                           Depois  dos  dias  todos  de  chuva,  de  novo  o  céu  traz o
                      azul,  que escondera,  aos  grandes  espaços  do  alto.  Entre  as
                      ruas,  onde  as  poças  dormem  como  charcos  do  campo,  e  a
                      alegria  clara  que  esfria  no  alto,  há  um  contraste  que  torna
                      agradáveis as ruas sujas e primaveril o céu de inverno baço.
                      É domingo e não tenho que  fazer.  Nem  sonhar  me  apetece,
                      de tão bem que está o dia.  Gozo-o  com" uma sinceridade de
                      sentidos a que a inteligência se abandona.  Passeio como um
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