Page 85 - Fernando Pessoa
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FERNANDO  PESSOA
                                     Sinfonia de uma noite inquieta

                            Dormia  tudo  como  se  o  universo  fosse  um  erro;  e  o
                       vento,  flutuando incerto,  era  uma  bandeira  sem  forma  des-
                       fraldada sobre um quartel sem ser.
                            Esfarrapava-se  coisa  nenhuma  no  ar  alto  e  forte,  e  os
                       caixilhos das janelas sacudiam os vidros para que a extremi-
                       dade se ouvisse.  No fundo de tudo,  calada, a noite era o tú-
                       mulo de Deus (a alma sofria com pena de Deus).
                            E, de repente, — nova ordem das coisas universais agia
                       sobre a cidade — o vento assobiava no intervalo do vento, e
                       havia uma noção dormida de muitas agitações na altura.  De-
                       pois a noite  fechava-se como um  alçapão, e um  grande sos-
                       sego fazia vontade de ter estado a dormir.





                            Não  é  nos  largos  campos  ou  nos  jardins  grandes  que
                       vejo chegar a primavera. É nas poucas árvores pobres de um
                       largo  pequeno  da  cidade.  Ali  a  verdura  destaca  como  uma
                       dádiva e é alegre como uma boa tristeza.

                            Amo esses largos  solitários,  intercalados entre ruas  de
                       pouco trânsito, e eles mesmos sem mais trânsito que as ruas.
                       São  clareiras  inúteis,  coisas  que  esperam,  entre  tumultos
                       longinquos. São de aldeia na cidade.

                            Passo  por eles,  subo  qualquer  das  ruas  suas  afluentes,
                       depois desço de novo essa rua, para a ele[s] regressar.  Visto
                       do outro lado é diferente,  mas a mesma  paz  deixa dourar de
                       saudade súbita — sol no ocaso — o lado que não vira na ida.

                            Tudo é inútil, e eu o sinto como tal. Quanto vivi se me
                       esqueceu  como  se o ouvira  distraído.  Quanto  serei  me  não
                       lembra como se o tivera vivido e esquecido.
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