Page 81 - Fernando Pessoa
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coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito,
da monotonia do entardecer!
Passam casais futuros, passam os pares das costureiras,
passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio
de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta re-
param em pouco os vadios parados que são donos das lojas.
Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos
ora muito ruidosos, [ ?] ora mais que ruidosos. Gente normal
surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta hora não
são muito freqüentes; [...] No meu coração há uma paz de
angústia, e o meu sossego é feito de resignação.
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é
alheio ao meu sentir, [...] quando o acaso deita pedras, ecos
de vozes incógnitas — salada coletiva da vida.
O cansaço de todas as ilusões e de tudo o que há nas
ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecan-
saço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido,
a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam
tal fim.
A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo
imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes... bri-
lhos do espírito, correntes do entendimento, vozes [...] e
filosofias que têm o mesmo entendimento que os reflexos
corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas
secreções.
Escrevo num domingo, manhã alta, num dia amplo de
luz suave, em que, sobre os telhados da cidade interrompida,
o azul do céu sempre inédito fecha no esquecimento a exis-
tência misteriosa de astros...
É domingo em mim também...