Page 76 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
toda a parte, esfacelando-se com silêncio(s) duro(s). O som
da chuva, diminui como uma voz de menos peso. O ruído
das ruas diminuiu angustiantemente. Nova luz, de um ama-
relado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma
respiração possível antes que o punho [?] do som trêmulo
ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada,
a trovoada começava a aqui não estar.
com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que
aumentava, o tremor da trovoada acalmava [?) nos largos
longes — rodava [ ?] em Almada...
Uma súbita luz formidável estilhaça-se. [...] Tudo esta-
cou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas
muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte.
O som da chuva que aumenta, alivia como lágrimas de tudo.
[?] Há chumbo.
Desde o princípio baço do dia quente e falso nuvens es-
curas e de contornos mal rotos rondavam a cidade oprimida.
Dos lados a que chamamos da barra, sucessivas e torvas,
essas nuvens sobrepunham-se, e uma antecipação de tragé-
dia estendia-se com elas do indefinido rancor das ruas contra
o sol alterado.
Era meio-dia e já, na saída para o almoço, pesava uma
esperança má na atmosfera empalidecida. Farrapos de nu-
vens esfarrapadas negrejavam na dianteira dela. O céu, para
os lados do Castelo, era limpo mas de um mau azul. Havia
sol mas não apetecia gozá-lo.
À uma hora e meia da tarde, quando se regressara ao
escritório, parecia mais limpo o céu, mas só para um lado
antigo. Sobre os lados da barra estava de fato mais desco-