Page 77 - Fernando Pessoa
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FERNANDO  PESSOA
                       berto.  De sobre a parte  norte  da  cidade,  porém,  as  nuvens
                       conjugavam-se lentamente numa nuvem só — negra, impla-
                       cável,  avançando lentamente  com  garras  rombas  de  branco
                       cinzento na ponta de braços negros.  Dentro em  pouco atin-
                       giria o sol, e os ruídos da cidade parece que se abafavam com
                       o esperá-la.  Era,  ou parecia,  um pouco  mais  límpido  o  céu
                       para os lados de leste, mas o calor fazia mais desagrado.  Sua-
                       va-se na sombra da sala grande do escritório.  "Vem  aí  uma
                       grande  trovoada",  disse  o  Moreira,  e  voltou  à  página  do
                       Razão.


                            Às três horas da tarde falhara já toda a ação do sol.  Foi
                       preciso — e era triste porque era verão — acender a luz elé-
                       trica — primeiro ao fundo da sala grande, onde estavam em-
                       pacotando as remessas, depois já a meio da sala, onde se tor-
                       nava difícil fazer sem erro as guias de remessa e notar nelas os
                       números  das senhas  de caminho de ferro.  Por  fim,  já  eram
                       quase quatro horas,  até nós — os privilegiados  das  janelas,
                       não  víamos  agradavelmente  para  trabalhar.  O  escritório  fi-
                       cou iluminado. O patrão Vasques atirou com o guarda-vento
                       do gabinete e  disse  para  fora saindo:  "Ô Moreira,  eu  tinha
                       que ir a Benfica mas não vou; vai-se fartar de chover''.  "E  é
                       lá desse lado",  respondeu o Moreira,  que morava  ao pé  da
                        Avenida.  Os ruídos da rua destacaram-se de repente, altera-
                       ram-se um pouco,  e era,  não sei porquê,  um  pouco triste o
                       som das campainhas dos elétricos na rua paralela e próxima.





                            Depois que as últimas chuvas passaram para o sul, e só
                        ficou o vento que as varreu, regressou aos montões da cidade
                        a alegria do sol certo e apareceu  muita roupa  branca pendu-
                        rada a saltar nas cordas esticadas por paus médios nas janelas
                        altas dos prédios de todas as cores.
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