Page 73 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra
Banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno
— vapor de carga preto — dos lados do Poço do Bispo para a
barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até
à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara
e solar da realidade externa, o instinto da minha inimpor-
tância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser
feliz.
Não acredito na paisagem. Sim. Não o digo porque creia
no "a paisagem é um estado de alma" do Amiel, um dos
bons momentos verbais da mais insuportável interiorice.
Digo-o porque não creio.
Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser
duros no sol baço, começava o outono antes que viesse,
numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma
vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais
claro, outras mais verde, da própria ausência de substância
da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens,
púrpuras diferentes e esbatidas; era, não já um torpor, mas
um tédio, em toda a solidão quieta por onde nuvens atra-
vessam.
A entrada do verdadeiro outono era depois anunciada
por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das
cores que ainda se não haviam esbatido, por qualquer coisa
de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das
paisagens e o aspecto disperso das coisas. Nada ia ainda mor-