Page 68 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por
trás do trabalho.
Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo.
Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respi-
rar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada.
Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã
desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existên-
cia própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos.
Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sôbre a
encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de ja-
nelas, num reverbero alto de fogo frio. À roda desses olhos
de chama dura toda a encosta é suave do fim do dia. Posso
ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com
esta minha tristeza se cruzou agora — visto com ouvido —
o som súbito do elétrico que passa, a voz casual dos conver-
sadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva.
Há muito tempo que não sou eu.
Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vie-
ram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do
céu amplo, certos retoques de brisa fria que anunciavam o
outono. Não era ainda o desverde da folhagem, ou o despren-
derem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompa-
nha a nossa sensação da morte externa, porque o há de ser
também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente,
um vago sono Sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são
tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que co-
mece nas coisas, começa em nós o outono.
Cada outono que vem é mais perto do último outono
que teremos, e o mesmo é verdade do verão ou de estio; mas
o outono lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no
verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é