Page 63 - Fernando Pessoa
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neio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda
sala tem a extensão de uma quinta.
Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a um
universo próximo mas independente. Somos, finalmente,
reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de nós
— quem sabe — com maior vigor que os de mais ouro falso.
Por um momento somos pensionistas do universo, e vive-
mos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preocu-
pações.
Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo
até mim não sei quem, o alguém que vai interromper a mi-
nha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o
meu império implícito. Não é que o passo me diga quem é
que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que
eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz
saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só
passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele
que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-
se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: "Sozinho, sr.
Soares?". E eu respondo:' 'Sim, já há tempo...". E ele então
diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho,
no cabide: "Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares,
e de mais a mais...". "Grande maçada, não há dúvida",
respondo eu. "Até dá vontade de dormir", diz ele, já de
casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. "E dá",
confirmo, sorridente. Depois, estendendo a mão para a ca-
neta esquecida, reentro, gráfico na saúde anônima da vida
normal.
Dizem que o tédio é uma doença de inertes, ou que ata-
ca só os que nada têm que fazer. Essa moléstia da alma é
porém mais sutil: ataca os que têm disposição para ela, e