Page 63 - Fernando Pessoa
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102                FERNANDO  PESSOA
                     neio sem chamamento!  Toda casa se torna um  campo,  toda
                     sala tem a extensão de uma quinta.

                         Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a um
                     universo  próximo  mas  independente.  Somos,  finalmente,
                     reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de nós
                     — quem sabe — com maior vigor que os de mais ouro falso.
                     Por  um  momento  somos  pensionistas  do  universo,  e  vive-
                     mos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preocu-
                     pações.


                         Ah,  mas reconheço,  naquele passo na escada,  subindo
                     até mim não sei quem, o  alguém  que vai  interromper a mi-
                     nha  solidão  espairecida.  Vai  ser  invadido  pelos  bárbaros  o
                     meu  império implícito.  Não é que o passo me  diga  quem  é
                     que vem, nem que me lembre o  passo deste ou  daquele  que
                     eu conheça.  Há um mais surdo instinto na  alma  que  me  faz
                     saber que é para  aqui  que vem o que sobe,  por enquanto só
                     passos,  na escada  que  subitamente vejo,  porque  penso  nele
                     que a sobe.  Sim, é um dos empregados.  Pára,  a porta ouve-
                     se, entra.  Vejo-o todo.  E  diz-me,  ao entrar:  "Sozinho,  sr.
                     Soares?". E eu respondo:' 'Sim, já há tempo...". E ele então
                     diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho,
                     no cabide: "Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares,
                     e  de  mais  a mais...".  "Grande  maçada,  não  há  dúvida",
                     respondo  eu.  "Até  dá  vontade  de dormir",  diz  ele,  já  de
                     casaco roto,  e  encaminhando-se  para  a  secretária.  "E dá",
                     confirmo,  sorridente.  Depois,  estendendo a  mão  para  a  ca-
                     neta  esquecida,  reentro,  gráfico  na  saúde  anônima  da  vida
                     normal.





                         Dizem que o tédio é uma doença de inertes, ou que ata-
                     ca  só  os  que  nada  têm  que  fazer.  Essa  moléstia  da  alma  é
                     porém  mais  sutil:  ataca  os  que  têm  disposição  para  ela,  e
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