Page 58 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
          finges. Quisera tudo quanto pode tornar ridículo o que sou, e
          porque torna ridículo o que sou. Quisera, quisera...  Mas há
          sempre o  sol  quando  o  sol  brilha  e  a  noite  quando  a  noite
          chega. Há sempre a  mágoa quando a  mágoa nos  dói e o so-
          nho  quando  o  sonho  nos  embala.  Há  sempre  o  que  há,  e
          nunca o  que  deveria  haver,  não  por  ser  melhor  ou  por  ser
          pior, mas por ser outro. Há sempre...

              Na rua cheia de caixotes vão os carregadores limpando a
          rua. Um a um, com risos e ditos, vão pondo os caixotes nas
          carroças.  Do  alto  da  minha  janela  do  escritório  eu  os  vou
          vendo, com olhos tardos em que  as pálpebras estão dormin-
          do. E qualquer coisa de sutil, de incompreensível, liga o que
          sinto aos fretes que estou vendo fazer, qualquer sensação des-
          conhecida faz caixote de todo este meu tédio, ou angústia, ou
          náusea, e o ergue,  em ombros de quem  chalaceia alto,  para
          uma carroça que não está aqui. E a luz do dia,  serena como
          sempre,  luz  obliquamente,  porque  a  rua  é  estreita,  sobre
          onde  estão  erguendo os  caixotes  —  não  sobre  os  caixotes,
          que estão na sombra,  mas sobre o ângulo lá  ao  fim onde os
          moços  de  fretes  estão  a  fazer  não  fazer  nada,  indetermina  -
          damente.





              Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de
          ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral,  que o
          classificável é infinito e portanto se não pode classificar.  Mas
          o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de clas-
          sificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que es-
          tão nos interstícios do conhecimento.

              Talvez  porque  eu  pense  demais  ou  sonhe  demais,  o
          certo é que não distingo entre a realidade que existe e o so-
          nho, que é a realidade que não existe.  E assim  intercalo nas
          minhas meditações do céu e da terra coisas que  não brilham
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