Page 56 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora,
e foi corn uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de
repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta ve-
lha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir,
lembrar, esquecer — tudo isso se me confundiu, numa vaga
dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e
os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório
quedo.
Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei
sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço
cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver,
foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era
do escritório!) pousada em cima do tinteiro. Contemplei-a do
fundo do abismo, anônimo e disperso. Ela tinha tons verdes
de azul preto, e era lustrosa de um nojo que não era feio.
Uma vida!
Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demô-
nios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a
mosca lustrosa que pousa um momento diante deles? Reparo
fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Tal-
vez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente,
com um horror profundo e [...], que fiz a comparação risível.
Fui mosca quando me comparei a mosca. Senti-me mosca
quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca,
dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior
é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os
olhos para a direção do teto, não baixasse sobre mim uma
régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar
aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca,
sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório invo-
luntário estava outra vez sem filosofia.