Page 57 - Fernando Pessoa
P. 57

FERNANDO  PESSOA







                           Há  mágoas  íntimas  que  não  sabemos  distinguir  por  o
                      que  contêm  de  sutil  e  de  infiltrado,  se  são  da  alma  ou  do
                      corpo, se são o mal-estar de se estar sentindo a futilidade da
                      vida,  se  são  a  má  disposição  que  vem  de  qualquer  abismo
                      orgânico —  estômago,  fígado ou cérebro.  Quantas  vêzes se
                      me  tolda  a  consciência  vulgar  de  mim  mesmo,  num  sedi-
                      mento torvo de estagnação inquieta!  Quantas  vezes  me  dói
                      existir,  numa  náusea a  tal  ponto  incerta  que  não  sei  distin-
                      guir  se  é  um  tédio,  se  um  prenúncio  de  vômito!  Quantas
                      vezes...

                           Minha  alma está hoje triste até ao corpo.  Todo eu  me
                      dôo, memória, olhos e braços. Há como que um reumatismo
                      em tudo quanto sou.  Não me influi no ser a clareza  límpida
                      do  dia,  céu  de  grande  azul  puro,  maré  alta  parada  de  luz
                      difusa.  Não  me  abranda  nada  o  leve  sopro  fresco,  ou  tonai
                      como se o estilo não esquecesse, com que o ar tem personali-
                      dade.  Nada me é nada.  Estou triste, mas  não com uma tris-
                      teza definida, nem sequer com uma tristeza indefinida.  Estou
                      triste ali fora, na rua juncada de caixotes.

                           Estas expressões  não traduzem exatamente o  que sinto
                      porque sem dúvida nada pode traduzir exatamente o  que  al-
                      guém sente.  Mas de  algum  modo tento dar a  impressão  do
                      que sinto,  mistura de várias  espécies de eu e da  rua  alheia,
                      que, porque a vejo, também, de um modo íntimo que não sei
                      analisar, me pertence, faz parte de mim.

                           Quisera viver diverso em países distantes.  Quisera mor-
                      rer  outro  entre  bandeiras  desconhecidas.  Quisera  ser  acla-
                      mado  imperador  em  outras eras,  melhores  hoje  porque  não
                      são  de  hoje,  vistas  em  vislumbre e  colorido,  inéditas  a  es-
   52   53   54   55   56   57   58   59   60   61   62