Page 66 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

            oradas  sempre  na  mesma  casa  evitando  inconscientemente
            os charcos da chuva  fria, e um  pouco preocupado,  mistura-
            damente, de me ter esquecido sempre do guarda-chuva e da
            dignidade da alma.




                Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com
            toda  a  gente.  Há  coisas  da  seriedade  da  vida  que  podemos
            aprender  com  charlatães  e  bandidos,  há  filosofias  que  nos
            ministram os estúpidos, há lições de firmeza e de lei que vêm
            no acaso e nos que são do acaso. Tudo está em tudo.

                Em certos momentos muito claros da meditação,  como
            aqueles em que, pelo princípio da trade, vagueio observante
            pela ruas, cada pessoa me traz uma notícia,  cada casa me  dá
            uma novidade, cada cartaz tem um aviso para mim.

                Meu  passeio  calado é  uma  conversa  contínua,  e  todos
            nós, homens, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma gran-
            de  multidão  amiga,  acotovelando-se  de  palavras  na  grande
            procissão do Destino.





                              Paisagem de chuva

                Toda  a  noite,  e  pelas  horas  fora,  o  chiar  da  chuva
            baixou.  Toda  a  noite,  comigo  entredesperto,  a  monotonia
            fria  me  insistiu  nos  vidros.  Ora  um  rasgo  de  vento,  em  ar
            mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos
            rápidas pela vidraça; ora com som surdo só fazia sono no ex-
            terior morto.  A minha alma era a  mesma de sempre,  entre
            lençóis como entre gente, dolorosamente consciente do mun-
            do.  Tardava o  dia como a  felicidade —  àquela  hora  parecia
            que também indefinidamente.
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