Page 70 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
            que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai
            orlando  de  amarelo  morto  o  arredondamento  confuso  das
            poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o
            conhecimento claro,  na hora límpida,  da  insuficiência  anô-
            nima de tudo. O outono,  sim, o outono, o que há ou o que
            vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desi-
            lusão antecipada de todos os sonhos.  Que posso eu esperar e
            de quê? Já,  no  que penso de mim,  vou entre  as  folhas e  os
            pós  do  átrio,  na  órbita  sem  sentido  de  coisa  nenhuma,  fa-
            zendo som de vida nas lages limpas que um sol angular doura
            de fim não sei onde.


                Tudo quanto pensei,  tudo quanto sonhei,  tudo  quanto
            fiz ou não  fiz —  tudo  isso  irá  no outono,  como  os  fósforos
            gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis
            amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as reli-
            giões todas,  as  filosofias  com  que brincaram,  fazendo-as,  as
           crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma,
            desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os
            deuses que tive ao patrão Vasques que também tive, tudo vai
            no  outono,  tudo  no  outono,  na  ternura  indiferente  do  ou-
            tono. Tudo no outono, sim, tudo no outono...
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