Page 74 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO 115
rer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se
virava em saudade para a vida.
Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de
vento; soavam folhas num tom seco, ainda que não fossem
folhas secas; toda a terra tomava a cor e a forma impalpável
de um paul incerto. Descoloria-se o que fora sorriso último,
num cansaço de pálpebras, numa indiferença de gestos. E
assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava,
íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de rede-
moinho num átrio flutuava através da nossa consciência de
outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verda-
deiramente a vida.
Mas as primeiras chuvas do inverno, vindas ainda no
outono já duro, lavavam estas meias-tintas como sem res-
peito. Ventos altos, chiando em coisas paradas, barulhando
coisas presas, arrastando coisas móveis, erguiam, entre os
brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto
anônimo, sons tristes e quase raivosos de desespero sem
alma.
E por fim o outono cessava, a frio e cinzento. Era um
outono de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de
tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do
inverno traz de bom — verão duro findo, primavera por che-
gar, outono definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por
onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tris-
teza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.
Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje se
o escrevo é porque o lembro. O outono que tenho é o que
perdi.