Page 90 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
caixeiro liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me
sentir rejuvenescer.
Na grande praça dominical há um movimento solene de
outra espécie de dia. Em S. Domingos há a saída de uma
missa, e vai principiar outra. Vejo uns que saem e os que
ainda não entram, esperando por alguns que não estão vendo
quem sai.
Todas estas coisas não têm importância. São, como
tudo no comum da vida, um sono dos mistérios e das ameias,
e eu olho, como um arauto chegado à planície da minha me-
ditação.
Outrora, criança, eu ia a esta mesma missa, ou porven-
tura à outra, mas devia ser a esta. Punha, com a devida cons-
ciência, o meu único fato melhor, e gozava tudo — até o que
não tinha razão de gozar. Vivia por fora e o fato era limpo e
novo. Que mais quer quem tem que morrer e o não sabe pela
mão da mãe?
Outrora gozava tudo isto, por isso é só agora, talvez,
que compreendo quanto o gozava. Entrava para a missa
como para um grande mistério, e saía da missa como para
uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda
verdadeiramente é. Só o ser que não crê e é adulto, com alma
que recorda e chora, são a ficção e o transtorno, o desalinho e
a laje fria.
Sim, o que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse
lembrar-me do que fui. E esta multidão alheia que continua
ainda a sair da missa, e o princípio da multidão possível que
começa a chegar para entrar para a outra — tudo isto são
como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janelas
abertas do meu lar erguido sobre a margem.
Memórias, domingos, missas, prazer de haver sido, mi-
lagre do tempo que ficou por ter passado, e não esquece nun-
ca porque foi meu... Diagonal absurda das sensações prová-
veis, som súbito de carruagem de praça que soa rodas no
fundo dos silêncios ruidosos dos automóveis, e de qualquer
modo, por um paradoxo maternal do tempo, subsiste hoje,