Page 87 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Apagar tudo do quadro de um dia para outro, ser novo
com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da
emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou
ter o que imperfeitamente somos.
Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor
rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face
com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o
silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora,
nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra
coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios
de uma nova visão.
Altos montes da cidade! Grandes arquiteturas que as
encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos
de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de som-
bras e queimações — sois hoje, sois eu, porque vos vejo sois
o que [...] e amo-vos da amurada como um navio que passa
por outro navio e há saudades desconhecidas [?] na pas-
sagem.
Sonho triangular
A luz tornara-se de um amarelo exageradamente lento,
de um amarelo sujo de lividez. Haviam crescido os intervalos
entre as coisas, e os sons, mais espaçados de uma maneira
nova davam-se desligadamente. Quando se ouviam acaba-
vam de repente, como que cortados. O calor, que parecia ter
aumentado, parecia estar, ele calor, frio. Pela leve frincha
das portas encostadas da janela via-se a atitude de exagerada
expectativa da única árvore visível. O seu verde era outro. O
silêncio entrara-lhe com a cor. Na atmosfera haviam-se fe-
chado pétalas. E na própria composição do espaço uma inter-
relação diferente de qualquer coisa como planos havia alterado
e quebrado o modo dos sons, das luzes e das cores usarem a
extensão.