Page 93 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Bem sei: se ergo os olhos, está diante de mim a linha
sórdida da casaria, as janelas por lavar de todos os escritórios
da Baixa, as janelas sem sentido dos andares mais altos onde
ainda se mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de
sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei isto, mas é tão suave
a luz que doura tudo isto, tão sem sentido o ar calmo que me
envolve, que não tenho razão sequer visual para abdicar da
minha aldeia postiça, da minha vila de província onde o co-
mércio é um sossego.
Bem sei, bem sei... Verdade seja que é a hora de al-
moço, ou de repouso, ou de intervalo. Tudo vai bem pela
superfície da vida. Eu mesmo durmo, ainda que me debruce
da varanda, como se fosse a amurada de um barco sobre uma
paisagem nova. Eu mesmo nem cismo, como se estivesse
na província. E, subitamente, outra coisa me surge, me en-
volve, me comanda: vejo, por trás do meio-dia da vila toda a
vida em tudo da vila; vejo a grande felicidade estúpida da vida
doméstica, a grande felicidade estúpida da vida dos campos,
a grande felicidade estúpida do sossego na sordidez. Vejo,
porque vejo. Mas não vi e desperto. Olho em roda, sorrindo,
e, antes de mais nada, sacudo dos cotovelos do fato, infeliz-
mente escuro, todo o pó do apoio da varanda, que ninguém
limpou, ignorando que teria um dia, um momento que fosse,
que ser a amurada sem pó possível de um barco singrando
num turismo infinito.
O céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente
negro contra as asas, por contraste, vividamente brancas das
gaivotas em vôo inquieto. O dia, porém, não estava tempes-
tuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passara para por
sobre a outra margem, e a cidade baixa, úmida ainda do
pouco que chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se