Page 187 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
si-próprios. O que viveram foi em negação, em descon-
tentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro,
sem gestos, fechados sempre, pelo menos no gênero de vida,
entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não
saber agir.
Tenho sido sempre um sonhador irônico, infiel às pro-
messas interiores. Gozei sempre, como outros e estrangeiro,
as derrotas dos meus devaneios, assistente casual ao que pen-
sei ser. Nunca dei crença àquilo em que acreditei. Enchi as
mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda,
escorrente. A frase fora a única verdade. Com a frase dita
estava tudo feito; o mais era a areia que sempre fora.
Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo
alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista,
isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma
nação independente. Mas prefiro não me dar nome, ser o que
sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me
não saber prever.
Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois,
não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador
de mim mesmo, tenho que ter o melhor espetáculo que pos-
so. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas,
palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes
brandas e músicas invisíveis.
Guardo, íntima, como a memória de um beijo grato, a
lembrança de infância de um teatro em que o cenário azulado
e lunar representava o terraço de um palácio impossível. Ha-
via, pintado também, um parque vasto em roda, e gastei a
alma em viver como real aquilo tudo. A música, que soava
branda nessa ocasião mental da minha experiência da vida,
trazia para real de febre esse cenário dado.