Page 185 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
novidades sociais, e com alegria ia à conquista de uma liber-
dade que não sabia o que era, de um progresso que nunca
definira.
Mas o criticismo frusto dos nossos pais, se nos legou a
impossibilidade de ser cristãos, não nos legou o contenta-
mento com que a tivéssemos; se nos legou a descrença nas
fórmulas morais estabelecidas, não nos legou á indiferença à
moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o
problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a
como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram
contentemente porque viviam em uma época que tinha ain-
da reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que eles
destruíam, que dava força à sociedade, para que pudessem
destruir sem sentir o edifício rachar-se. Nós herdamos a des-
truição e os seus resultados.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos
insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar con-
quista-se hoje quase pelos mesmos processos, por que se con-
quista o intemamento num manicômio: a incapacidade de
pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação.
Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé
cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras
fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que trans-
feriam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns
eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamora-
dos só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus
proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam bus-
car a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que
entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente
viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nas-
cemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma