Page 180 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
                Como,  porém,  sou eu,  gozo  um  pouco  o  pouco  que  é
            imaginar-me  esse outro.  Sim,  logo  ele eu,  sob  parreira  ou
            árvore, comerá o dobro do que sei comer, bebera o dobro do
            que  ouso  beber,  rirá  o  dobro  do  que  posso  pensar  em  rir.
            Logo ele, eu agora. Sim, um momento fui outro: vi, vivi, em
            outrem,  essa alegria humilde e humana de existir como ani-
            mal  em  mangas  de  camisa.  Grande  dia  que  me  fez  sonhar
            assim! É tudo azul e sublime no alto como o meu sonho efê-
            mero de ser caixeiro de praça com  saúde em  não  sei  que  fé-
            rias de fim de dia.




                Quando o estio entra entristeço. Parece que a luminosi-
            dade,  ainda  que  acre,  das  horas  estivais  deverá  acarinhar
            quem  não  sabe quem  é.  Mas não,  a  mim não  me acarinha.
            Há um contraste demasiado entre a vida externa que exubera
            e o que sinto e penso, sem saber sentir nem  pensar — o  ca-
            dáver perenemente insepulto das minhas sensações. Tenho a
            impressão de que vivo,  nesta pátria informe  chamada o uni-
            verso, sob uma tirania política que, ainda que me não oprima
            diretamente, todavia ofende qualquer oculto princípio da mi-
            nha alma. E então desce em mim,  surdamente, lentamente,
            a saudade antecipada do exílio impossível.

                Tenho principalmente sono.  Não um  sono  que traz la-
            tente, como todos os sonos,  ainda os mórbidos, o privilégio
            físico do sossego.  Não  um  sono que,  porque  vai  esquecer  a
            vida,  e  porventura trazer  sonhos,  traz  na  bandeja  com  que
            nos  vem  até  a  alma  as  oferendas  plácidas  de  uma  grande
            abdicação.  Não:  este é  um  sono  que  não  consegue  dormir,
            que  pesa  nas  pálpebras  sem  as  fechar,  que junta num  gesto
            que se sente ser de estupidez e repulsa as comissuras sentidas
            dos beiços descrentes. Este é um sono como o que pesa inu-
            tilmente sobre o corpo nas grandes insônias da alma.
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