Page 177 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Nastro desatado, a alma não existe em si mesma. As
grandes paisagens são para amanhã, e nós já vivemos. Fa-
lhou a conversa interrompida. Quem diria que a vida havia
de ser assim?
Perco-me se me encontro, duvido se acho, não tenho se
obtive. Como se passeasse, durmo, mas estou desperto.
Como se dormisse, acordo, e não me pertenço. A vida, afi-
nal, é, em si mesma, uma grande insônia, e há um estremu-
nhamento lúcido em tudo quanto pensamos e fazemos.
Seria feliz se pudesse dormir. Esta opinião é deste mo-
mento, porque não durmo. A noite é um peso imenso por
trás do afogar-me com o cobertor mudo do que sonho. Te-
nho uma indigestão na alma.
Sempre, depois de depois, virá o dia, mas será tarde,
como sempre. Tudo dorme e é feliz, menos eu. Descanso um
pouco, sem que ouse que durma. E grandes cabeças de mons-
tros sem ser emergem confusas do fundo de quem sou. São
dragões do Oriente do abismo, com línguas encarnadas de
fora da lógica, com olhos que fitam sem vida a minha vida
morta que os não fita.
A tampa, por amor de Deus, a tampa! Concluam-me a
inconsciência e vida! Felizmente, pela janela fria, de portas
desdobradas para trás, um fio triste de luz pálida começa a
tirar a sombra do horizonte. Felizmente, o que vai raiar é o
dia. Sossego, quase, do cansaço do desassossego. Um galo
canta, absurdo, em plena cidade. O dia lívido começa no meu
vago sono. Alguma vez dormirei. Um ruído de rodas faz
carroça. Minhas pálpebras dormem, mas não eu. Tudo, en-
fim, é o Destino.