Page 179 - Fernando Pessoa
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FERNANDO  PESSOA

                               Atiro  com  a  caixa  de  fósforos,  que  está  vazia,  para  o
                          abismo  que a rua é para  além do parapeito da minha  janela
                          alta sem sacada.  Ergo-me na cadeira e escuto.  Nitidamente,
                          como se significasse qualquer coisa, a caixa de fósforos vazia
                          soa  na  rua  que  [se]  me  declara  deserta.  Não  há  mais  som
                          nenhum,  salvo os  da cidade inteira.  Sim,  os da cidade  dum
                          domingo  inteiro  —  tantos,  sem  se  entenderem,  e  todos
                          certos.

                               Quão pouco,  no mundo real,  forma o suporte  das  me-
                          lhores meditações.  O ter chegado tarde para almoçar,  o  te-
                          rem-se  acabado  os  fósforos,  o  ter  eu  atirado,  individual-
                          mente, a caixa para a rua,  mal  disposto  por ter  comido  fora
                          de horas, ser domingo a promessa aérea de um poente mau,
                          o não ser ninguém no mundo, e toda a metafísica.

                               Mas quantos Césares fui!




                               Na perfeição nítida do dia estagna contudo o ar cheio de
                          sol.  Não é a pressão presente da trovoada futura,  mal-estar
                          dos corpos involuntários, vago baço do céu azul deveras. É o
                          torpor sensível da insinuação do ócio,  pluma roçando leve a
                          face a adormecer. É estio mas verão. Apetece o campo até a
                          quem não gosta dele.


                               Se  eu  fora  outro,  penso,  este  seria  para  mim  um  dia
                          feliz,  pois o sentiria  sem  pensar  nele.  Concluiria  com  uma
                          alegria de antecipação o meu trabalho normal —  aquele  que
                          me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o car-
                          ro  para  Benfica,  com  amigos  combinados.  Jantaríamos  em
                          pleno fim de sol, entre hortas.  A  alegria em  que estaríamos
                          seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, re-
                          conhecida como de ali.
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