Page 188 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO


                O cenário era definitivamente azulado e lunar. No palco
            nâo me lembro quem aparecia, mas a peça que ponho na pai-
            sagem  lembrada,  sai-me  hoje  dos  versos  de  Verlaine  e  de
            Pessanha;  não  era  a  que  deslembro,  passada  no  palco  vivo
            aquém daquela realidade de azul música.  Era minha e  fluida,
            (a) mascarada imensa e lunar,  (o)  interlúdio de prata e azul
            findo.

                Depois  veio a vida.  Nessa  noite  levaram-me  a  cear  ao
            Leão.  Tenho  ainda a  memória  dos  bifes  no  paladar  da  sau-
            dade — bifes, sei ou suponho, como hoje ninguém faz ou eu
            não como. E tudo se me mistura — infância, vivida à distân-
            cia, comida saborosa de noite, cenário lunar, Verlaine futuro
            e  eu  presente  —  numa  diagonal  difusa,  num  espaço  falso
            entre o que fui e o que sou.





                Tudo quanto não é a minha alma é para mim, por mais
            que eu queira que o não seja, não mais que cenário e decora-
            ção. Um homem, ainda que eu possa reconhecer pelo pensa-
            mento que ele é um ente vivo como eu, teve sempre,  para o
            que  em  mim,  por  me  ser  involuntário,  é  verdadeiramente
            eu,  menos  importância que uma árvore,  se a  árvore é  mais
            bela.  Por  isso senti  sempre  os  movimentos  humanos  —  as
            grandes tragédias coletivas da história ou  do  que  dela  fazem
            — como frisos coloridos, vazios da alma dos que passam ne-
            les. Nunca me pesou o que de trágico se passasse na China. É
            decoração longínqua, ainda que a sangue e peste.


                Relembro,  com  tristeza  irônica,  uma  manifestação  de
            operários,  feita  não  sei  com  que  sinceridade  (pois  me  pesa
            sempre admitir sinceridade nas coisas coletivas, visto que é o
            indivíduo,  a  sós  consigo,  o  único  ser  que  sente).  Era  um
            grupo compacto e solto de estúpidos  animados,  que  passou
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