Page 193 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Era, sem dúvida, nas alamedas do parque que se passou a
tragédia de que resultou a vida. Eram dois e belos e deseja-
vam ser outra coisa; o amor tardava-lhes no tédio do futuro,
e a saudade do que haveria de ser vinha já sendo filha do
amor que não tinham tido. Assim, ao luar dos bosques pró-
ximos, pois através deles se coava a lua, passeavam, mãos
dadas, sem desejos nem esperanças, através do deserto pró-
prio das aléias abandonas. Eram crianças inteiramente, pois
que o não eram em verdade. De aléia em aléia, silhuetas
entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele
cenário de ninguém. E assim se sumiram para o lado dos
tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruído da vaga
chuva que cessa é o dos repuxos de para onde iam. Sou o
amor que eles tiveram e por isso os sei ouvir na noite em que
não durmo, e também sei viver infeliz.
Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.
Como quem visita um lugar onde passou a juventude,
consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar
da minha vida em que era meu uso fumá-los. E através do
sabor leve do fumo todo o passado revive-me.
Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom
de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso
de recordações que os estremece. A infância! E entre os
meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e
gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre
do soldado de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana
casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto
com o sabor do chocolate mistura-se a meu sabor a minha
felicidade passada, a minha infância ida e pertenço voluptuo-
samente à suavidade da minha dor.