Page 194 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

                Nem  por simples é  menos  solene  este  meu  ritual  (do)
           •paladar.
                Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me
            reconstrói  momentos  passados.  Ele  apenas  roça  a  minha
            consciência  de ter  paladar.  Por  isso  mais  [...]  me  evoca  as
            horas que morri,  mais longínquas as  faz presentes,  mais ne
            voentas  quando  me  envolvem,  mais etéreas  quando  as  cor-
            porizo. Um cigarro mentolado, um charuto barato toldam de
            suavidade alguns meus momentos.  Com que sutil plausibili-
            dade  de  sabor-aroma  reergo os  cenários  mortos  e  empresto
            outra vez as  [...]  de  um  passado,  tão século  dezoito  sempre
            pelo  afastamento  malicioso e  cansado tão  medievais  sempre
            pelo inevitavemente perdido.






                Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da
            vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos
            nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos.
            Quando julgamos que vivemos, estamos mortos;  vamos vi-
            ver quando estamos moribundos.
                Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma
            que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte.
            Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido
            metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro.
                Tudo aquilo que em nossas atividades consideramos su-
            perior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é
            o  ideal  senão a confissão de  que a  vida  não  serve?  Que  é a
            arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo tuor-
            to, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O
            mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida,  é  an-
            tes uma imersão em nós mesmos,  uma destruição das rela-
            ções entre nós e a vida, uma sombra agitada da morte.


                O próprio  viver é morrer,  porque não temos  um  dia  a
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