Page 240 - Fernando Pessoa
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lizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena de não
saber o que é feito dele, ou na verdade, suponho somente que
deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que
passaram dez anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o
conheci, deve ser homem, estúpido, cumpridor dos seus de-
veres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer —
morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado
com o corpo, ele que tão bem viajava com a alma.
Recordo-me de repente: ele sabia exatamente por que
vias férreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias férreas se
percorria a Inglaterra, e, através das pronúncias erradas dos
nomes estranhos, havia a certeza aureolada da sua grandeza
de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez
um dia, em velho, se lembre, como é não só melhor, senão
mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar
em Bordéus.
E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qual-
quer, e ele estivesse somente imitando alguém. Ou... Sim,
julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a
inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que so-
mos acompanhados na infância por um espírito da guarda,
que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois,
talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como
as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso
destino.
Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente
o que se chama erudição, e há uma erudição do entendi-
mento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma
erudição da sensibilidade.