Page 244 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
                Cada casa por que passo, cada chalé, cada casita  isolada
           caiada  de  branco  e  de  silêncio  —  em  cada  uma  delas  num
           momento   me  concebo  vivendo,  primeiro  feliz,  depois  te-
           diento, cansado depois; e sinto que tendo-a abandonado, tra-
           go comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi.  De
           modo que todas as minhas viagens são uma colheita dolorosa
           e  feliz de  grandes alegrias,  de tédios  enormes,  de  inúmeras
           falsas saudades.

                Depois, ao passar diante de casas, de ''Villas",  de cha-
            lés, vou vivendo em mim todas as vidas das criaturas que ali
            estão. Vivo todas aquelas vidas domésticas ao mesmo tempo.
            Sou o pai, a mãe, os filhos, os primos, a criada e o primo da
            criada, ao mesmo tempo e tudo junto, pela arte espacial  que
            tenho  de  sentir  ao  mesmo  [tempo]  várias  sensações  diver-
            sas,  de  viver  ao  mesmo  tempo  —  e  ao  mesmo  tempo  por
            fora, vendo-as, e por dentro sentindo-mas — as vidas de vá
            rias criaturas.




                Paisagens inúteis, como aquelas que dão a volta às chá-
            venas  chinesas,  partindo  da  asa. e  vindo  acabar  na  asa,  de
            repente.  As chávenas são sempre tão pequenas...  Para onde
            se prolongaria, e com que (...) de porcelana, a paisagem que
            não se prolongou para além da asa da chávena?

                É possível a certas almas sentir uma dor profunda por a
           paisagem pintada num abano chinês não ter três  dimensões.




                —  Naufrágios? Não, nunca tive nenhum.  Mas tenho a
           impressão de que todas as minhas viagens naufraguei,  a mi-
           nha salvação escondida em  [...]
                —  Sonhos  vagos,  luzes  confusas,  paisagens  perplexas
            — eis o que me resta na alma de tanto que viajei.
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