Page 256 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
ginados, só as minhas conversas decorrentes em sonho, têm
uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito
é presente como uma imagem num espelho.
Pesa-me, aliás, toda a idéia de ser forçado a um contato
com outrem. Um simples convite para jantar com üm amigo
me produz uma angústia difícil de definir. A idéia de uma
obrigação social qualquer — ir a um enterro, tratar junto de
alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma
pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida —, só essa idéia
me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde, a
mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso
real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não justi-
fica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a apren-
der.
"Os meus hábitos são da solidão, que não dos ho-
mens"; não sei se foi Rousseau, se Senancour, o que disse
isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécie — não po-
derei talvez dizer da minha raça.
Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos
uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não,
temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples —
não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a nin-
guém,mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo
direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem,
mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha
que haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo
de um navio saído de um porto que desconhecemos para um
porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros, uma
amabilidade de viagem. Não fazer bem, porque não sei o que
é o bem nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que
males produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se