Page 334 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sa-
bedores do invisível é que, quando escrevem para nos contar
ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me
o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Dia-
bo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que
há o comércio com os demônios de ser mais fácil que o co-
mércio com a gramática? Quem, através de longos exercí-
cios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter
visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de
uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dog-
ma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever —
já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja
da lei oculta —, mas ao menos com elegância e fluidez, pois
no próprio abstruso as pode haver [?] Porque há de gastar-se
toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e
não há de sobrar um reles bocado, com que se estude a cor e
o ritmo da linguagem dos homens?
Desconfio dos mestres que o não podem ser primários.
São para mim como aqueles poetas estranhos que são inca-
pazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estra-
nhos; gostara, porém, que me provassem que o são por supe-
rioridade ao normal e não por impotência dele.
Dizem que há grandes matemáticos que erram adições
simples; mas aqui a comparação não é com errar, mas com
desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e
dois para dar cinco: é um ato de distração, e a todos nós pode
suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar ou
como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua
formidável maioria.