Page 338 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
E eu digo que isto — por que escrevo eu este livro?
Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; es-
crito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo,
(...) — eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para
trair a minha própria teoria.
E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que
talvez isto não seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.
A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a
expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a
expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ou-
samos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e
é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é
a tal ponto forte que, embora reduzida a ação, a ação, a que
se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou
inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois
tipos de artista: o que exprime o que não tem, e o que ex-
prime o que sobrou do que teve.
A procura da verdade — seja a verdade subjetiva do
convencimento, a objetiva da realidade, ou a social do di-
nheiro ou do poder — traz sempre consigo, se nela se em-
prega quem merece prêmio, o conhecimento último da sua
inexistência. A sorte grande da vida sai somente aos que
compraram por acaso.
A arte tem valia porque nos tira de aqui.