Page 340 - Fernando Pessoa
P. 340

LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
           comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a
           escrever.

               Suponha-se,  porém,  que  desejo  comunicá-la  a  outros,
           isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos outros
           da nossa identidade íntima com eles;  sem o que nem há co-
           municação nem  necessidade de a  fazer.  Procuro  qual  será a
           emoção  humana  vulgar  que  tenha  o  tom,  o  tipo,  a  forma
           desta  emoção em  que estou  agora,  pelas  razões  inumanas  e
           particulares de  ser  (um)  guarda-livros cansado  ou  (um)  lis-
           boeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que
           produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da
           infância perdida.

               Tenho  a  chave  para  a  porta  do  meu  tema.  Escrevo  e
           choro a minha infância perdida;  demoro-me comovidamente
           sobre  os pormenores  de  pessoas e  mobília  da  velha  casa  na
           província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres,
           de  ser livre  por  não  saber pensar  nem  sentir  —  e  esta  evo-
           cação,  se  for  bem  feita  como  prosa  e  visões,  vai  despertar
           no meu leitor exatamente a emoção que eu senti, e que nada
           tinha com infância.


                Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é
           infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é
           tão-somente a noção da existência real dos outros e da neces-
           sidade  de  conformar  a  essa  existência  a  nossa,  que  se  não
           pode  conformar a ela.  A  mentira  é  simplesmente  a  lingua-
           gem  ideal  da alma,  pois,  assim como nos servimos  de  pala-
           vras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para
           em  linguagem  real  traduzir  os  mais  íntimos  e  sutis  movi-
           mentos da emoção e do pensamento,  que  as palavras  forço-
           samente não poderão nunca traduzir,  assim nos servimos da
           mentira e da ficção para nos entendermos uns  aos outros, o
           que com a verdade,  própria e intransmissível,  se nunca po-
           deria fazer.
   335   336   337   338   339   340   341   342   343   344   345