Page 339 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade,
unicamente a liberdade.
Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é
somente ser mudado de cela. A arte, se nos liberta dos mani-
pansos assentes e obsoletos, também nos liberta das idéias
generosas e das preocupações sociais — manipansos também.
A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sen-
timos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa
personalidade para especial libertação. O que sinto, na ver-
dadeira substância com que o sinto, é absolutamente inco-
municável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais
incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a ou-
trem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na
linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as
que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu
senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta
ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que
é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é
converter os meus sentimentos num sentimento humano tí-
pico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo
que senti.
Tudo quanto é abstrato é difícil de compreender, porque
é difícil de conseguir para ele a atenção de quem o leia. Da-
rei, por isso, um exemplo simples, em que as abstrações que
formei se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo
qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio
de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da
vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se
vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam,
quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente
minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há