Page 341 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
A arte mente porque é social. E há só duas grandes for-
mas da arte — uma que se dirige à nossa alma profunda, a
outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poe-
sia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na
própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria in-
tenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas
variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; ou-
tra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos
sabemos bem que nunca houve.
Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um
olhar significativo que não medite, de repente, e seja de
quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em
cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar
ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o estadista
que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a pros-
titua, a quem compremos, amou, ao menos, o comprarmo-
la. Não fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade uni-
versal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o
beijo que trocamos.
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agra-
dável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais
animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entre-
tém. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um
sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida — umas
porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras
porque vivem da mesma vida humana.
Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um
romance é uma história do que nunca foi e um drama é um
romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de