Page 348 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamen-
tais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que
me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar
mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça
festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto
poderia ter dito.
Quanto mais alto o homem, de mais coisas tem que se
privar. No píncaro não há lugar senão para o homem só.
Quanto mais perfeito, mais completo; e quanto mais com-
pleto, menos outrem.
Estas considerações vieram ter comigo depois de ler
num jornal a notícia da grande vida múltipla de um homem
célebre. Era um milionário americano, e tinha sido tudo.
Tivera quanto ambicionara — dinheiro, amores, afetos, de-
dicações, viagens, coleções. Não é que o dinheiro possa tudo,
mas o grande magnetismo, com que se obtém muito dinhei-
ro, pode, efetivamente quase tudo.
Quando depunha o jornal sobre a mesa do café, já refle-
tia que o mesmo, na sua esfera, poderia dizer o caixeiro de
praça, mais ou menos meu conhecido, que todos os dias al-
moça, como hoje está almoçando, na mesa ao fundo do can-
to. Tudo quanto o milionário teve, este homem teve; em
menor grau, é certo, mas para a sua estatura. Os dois ho-
mens conseguiram o mesmo, nem há diferença de celebri-
dade, porque aí também a diferença de ambientes estabelece
a identidade. Não há ninguém no mundo que não conhecesse
o nome do milionário americano; mas não há ninguém na
praça de Lisboa que não conheça o nome do homem que está
ali almoçando.