Page 350 - Fernando Pessoa
P. 350
LIVRO DO DESASSOSSEGO
uma indicação de valor. Para os valores maiores não há moe-
da: são de papel e esse valor é sempre pouco.
Com estas psicologias metafísicas se consolam os hu-
mildes como eu.
Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia,
num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que es-
crevo, durarem com louvor, eu terei enfim gente que me
' 'compreenda'', os meus, a família verdadeira para nela nas-
cer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, (eu) terei já
morrido há muito. Serei compreendido só em efígie quando a
afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que
houve, quando vivo.
Um dia talvez compreendam que cumpri, como ne-
nhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do
nosso século; e quando o compreendam, hão de escrever que
na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi
entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me aconte-
cesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever,
incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo
daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para
uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sa-
bemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma
alegria do ar é fresca demais contra a pele. O dia vai aca-
bando não em cinzento, mas em azul-pálido. Um azul vago
reflete-se, mesmo, nas pedras das ruas. Dói viver, mas é de
longe. Sentir não importa. Acende-se uma ou outra monta.
Em uma outra janela alta há gente que vê acabarem o
trabalho. O mendigo que roça por mim pasmaria, se me co-
nhecesse.