Page 77 - Revista PSIQUE Ciência e Vida
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            Escreveu 12 óperas, mas revelou-se um exímio   impossível naquele tempo, e que iria modificar
          compositor de um gênero que aperfeiçoou: a   totalmente sua história de vida. As consequências
          canção lírica (lieder). Em um ano compôs cerca   desse mal, de que ele nunca se livraria, apesar
          de 150 obras, baseadas em textos de Shakespeare   de momentâneas melhoras, foram terríveis para
          e Goethe, entre outros autores consagrados. Os     sua vida. Passou por
          de Schubert ganham ritmo e vida própria, são   várias internações
          poesias líricas em forma de música, totalmente   para se recuperar   Schubert revelou-se um
          revolucionarias e belas. É principalmente na   fisicamente, algumas   exímio compositor de um
          escolha dos textos e em sua ornamentação   crises de depressão   gênero que aperfeiçoou:
          musical que se revela o romantismo e a   grave, o desleixo
          genialidade do compositor.              com a aparência e         a canção lírica em um
            Mas a grandiosidade e importância de sua obra   a rebeldia com as   ano, compôs cerca de 150
          musical não foram reconhecidas de imediato, pois   restrições impostas   obras baseadas em textos
          teve a “infelicidade” de ser contemporâneo e viver   (rejeição mando do   de Shakespeare e Goethe
          na mesma cidade que o gênio Beethoven, que   pai) dificultavam sua
          atraia todas as tenções e era sucesso absoluto.  recuperação, como
            Franz fazia muito sucesso entre os músicos   também favoreciam novas recaídas.
          e artistas em geral, porém não atingia o grande   Bebia e fumava ainda mais. Ao longo do tempo,
          público, que não tinha, naquele momento, preparo   passou a apresentar comportamentos agressivos
          para entender sua grandiosidade. Tampouco era   e intempestivos (ofender as pessoas conhecidas,
          valorizado pela crítica, que só tinham ouvidos   gritar com quem não fosse rápido em atende-lo,
          para Beethoven e o menosprezava. Prova disso é   quebrar objetos), sendo que sempre foi conhecido
          que durante toda a sua vida apenas uma vez um   pela cordialidade, galanteios e bons modos.
          concerto público com obras escritas por ele foi   Quanto à complexidade da sua personalidade
          organizado em Viena.                    percebe-se uma ciclotimia, pois a hipomania de
            Aos poucos Schubert vai sendo tomado   Schubert se manifestou em períodos de humor
          por desgostos, gastava o pouco que tinha na   expansivo: criatividade maior que o habitual
          vida boêmia, sua vida sexual era basicamente   (produziu mais de 600 obras em poucos anos),
          com prostitutas; buscava do uso de bebida,   loquacidade, aumento da atividade sexual e
          de tabaco e, eventualmente também de ópio.   decisões absurdas em relação às suas poucas
          O não reconhecimento de sua vasta obra e,   finanças, sempre gastando mais que podia.
          consequentemente, a falta crônica de dinheiro   Passava por períodos em que era metódico e
          fizeram com que ele “afundasse” na depressão.  organizado, até obsessivo: acordava às cinco
            Nesse mesmo período (1823) contraiu sífilis   da manhã, escrevia música das seis a uma da
          doença vergonhosa socialmente e de cura   tarde, almoçava no mesmo restaurante, depois



                               Uma noite com vênus e uma vida inteira com mercúrio.

                                  Schubert sofria de sífilis, uma doença sexualmente transmissível causada pela bactéria
                               Treponema pallidum e bastante frequente na população até finais do século XIX, e comum na
                               biografia de vários compositores, escritores e poetas da época (Oscar Wilde, James Joyce,
                               Charles Baudelaire, Robert Schumann, Paul Gauguin, Toulouse Lautrec, entre outros). Era
                               incurável e letal até a descoberta da penicilina, em 1928. Hoje, o tratamento é relativamente
                               simples e rápido, porem nem sempre foi assim. Antigamente, o tratamento consistia na
                               utilização de mercúrio (Hg) na forma de vaporização, injeções subcutâneas ou aplicação
                               tópica de unguentos de sais de mercúrio (o primeiro registro deste tratamento foi do médico
                               persa Ibn Sina, em 1025). Havia, contudo, um “pequeno problema”, os efeitos tóxicos do Hg
                               suplantavam frequentemente os “benefícios” do seu uso. Por isso, há quase um século o uso
                               desse metal pesado foi abolido como remédio para a sífilis.
                                  As manifestações neurotoxinas do uso do Hg são amplas e devastadoras e incluem
                               alterações em nível psicológico (depressão, comportamentos antissociais, e agressivos, delírios,
                               alucinações) e físico (fraqueza, anemia, tremores, turvamento da visão, descoordenação motora,
                               lapso de memória), que compõe um quadro sintomatológico conhecido como “mercurialismo”
                               ou simplesmente a “doença do chapeleiro louco”. Este último nome deve-se ao fato de o
                               envenenamento por Hg ser comum entre os chapeleiros (fabricantes de chapéus) que usavam
                               Hg para curar e tratar o feltro dos chapéus que fabricavam. Não é por acaso que a personagem
                               de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, é o “Chapeleiro Maluco”.



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