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30 Março, 2018                                                                                            23
     Gazeta das Caldas                                                           Opinião




       UM MÉDICO DAS CALDAS NA GRANDE GUERRA
                                                                                                                  DR
         Fotografar é um acto, refl ectir é uma meditação   -se a palavra “menuiserie”, que em francês signifi -
         crítica, anterior e posterior ao acto. Fotografar é   ca carpintaria. Apontamento de uma ironia descon-
       “um acto essencialmente emotivo, refl ectir é cosa   certante. Mas entre todos estes fragmentos de um
       mentale. Escrever é reduzir a papel o resultado da   tempo ruinoso, há uma imagem que me cativa em
       refl exão”, explicava Gérard Castello-Lopes. Entre o   particular. Disposta na vertical, mostra-nos o ângu-
       acto emotivo de fotografar e o exercício delimitador   lo parcialmente desfeito que liga a fachada de um
       de escrever, a refl exão surge em diversos momen-  edifício a uma das suas laterais. No topo da fachada,
       tos. Antes da fi xação de um fragmento da realidade,   resiste a palavra “gare” de um letreiro que se supõe
       depois da imagem revelada, desbravando caminho   mais extenso. A meio da lateral, observamos à lupa
       para a escrita, após a escrita. E são tantos os olhares   um anúncio às Clément Cycles. Encostados a essa
       cruzados neste processo. No olhar do fotógrafo es-  parede, sentados, em posição descontraída, uma
       tará a origem da refl exão, a qual provocará ao longo   fi la de seis militares a ler.
       do tempo, sob a forma de imagem revelada, encon-     Podemos imaginar o que liam, jornais, revistas, li-
       tros mais ou menos acidentais com outros olhares   vros, correspondência, instruções. Manuais de sobre-
       e com novos modos de refl ectir.   vivência. Observamos ainda um outro militar, ligei-
          Organizadas por temas, as fotografi as surgem-me   ramente afastado, de pé. Não conseguimos perceber
       a salvo do caos característico de qualquer espólio.   exactamente a sua postura, supomos que observe o
       Noto que num dos envelopes foi escrita a palavra   horizonte com as mãos em pala sobre a testa. Por que
       “ruína”, conceito poético por excelência. Naquele que   me cativa esta imagem? Por haver nela uma poética
       é ainda hoje considerado o grande poema do pós-  do instante. Por detrás da objectiva que fi xou o ins-
       -Guerra, vindo a lume em 1922, escrevia T. S. Eliot:   tante, havia o olhar inteligente de um homem capaz
       «Vou mostrar-te o medo num punhado de poeira».   de perceber a poesia do momento. Um momento de
       A poeira eram os cenários de destruição e de de-  suspensão, de interrupção, um momento em que o
       vastação projectados pela I Grande Guerra, expe-  tempo escoroado na paisagem de ruína surge des-
       riência limite de um momento de crise na putativa   continuado por homens com os olhos postos num
       harmonia do mundo. A poeira era uma civilização   horizonte de esperança. Um livro, uma carta, um
       em ruínas. E o medo era o de ir vivendo entre des-  jornal, transportá-los-á dali para outro lugar como
       troços: «Nós que éramos vivos agora vamos mor-  uma espécie de Clément Cycles do pensamento. Que
       rendo / Com alguma paciência».   mais se pode pedir à arte?
          Ali, um soldado procura orientar-se na encruzi-
       lhada do território desfi gurado; acolá, a fachada de   Henrique Manuel Bento Fialho
       um edifício tal corpo mutilado nas trincheiras; além,
       homens fardados, uns a pé, outros montando cava-
       los, circulam numa avenida ornada de entulho e de
       escombros. Num dos edifícios em ruínas percebe-
                                                               Fotografia de Fernando da Silva Correia, pertencente ao álbum “Na frente do Aisne - Vailly e Soupir”.
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