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Cá ou Lá, todos tentamos viver
Há aproximadamente um ano e três meses, em Portugal, foram reportados os dois primeiros casos da doença
Covid-19 que, no dia 11 de março de 2020, foi declarada, pela Organização Mundial de Saúde, como a causa de
uma pandemia global. Significa isto que foi há pouco mais de um ano que se deu início ao que seria não um, mas
uma sucessão de estados de emergência e de confinamento. Uns cá, outros lá, por todo o mundo vimos as nossas
vidas, repentinamente, limitadas e delimitadas pelas quatro paredes das nossas casas e as ruas ficaram cada vez
mais vazias e desertas.
Naturalmente, quando esta realidade se impôs nas vidas da população portuguesa, nunca se pensou que du-
rasse um mês, muito menos seis meses e, se alguém ousasse afirmar que, um ano depois, o confinamento seria a
nova normalidade, certamente não seria levado a sério. A esperança de um final iminente permitiu que muitos de
nós olhássemos para o confinamento como uma oportunidade. Oportunidade de finalizar algo pendente, oportuni-
dade de iniciar um projeto, oportunidade de voltar à forma física, oportunidade de aproveitar o tempo que antes
passava a correr. Por outras palavras, uma oportunidade de finalmente começar (re)construir a vida.
Com o passar dos dias, os casos positivos de Covid-19 aumentaram, os hospitais ficaram cada vez mais sobre-
carregados e o número de baixas não cessava... Cenário que não se distancia muito de uma grande guerra que,
paulatinamente, nos vai deixando marcas. Escusado será dizer que toda a motivação, esperança e ânimo rapida-
mente se dissiparam e a oportunidade que tanto esperávamos deu lugar ao desalento, ao desencanto, revelando
que o tempo, esse, não confina, vai passando…
Ao longo deste ano tenebroso, no que diz respeito à Pandemia, foi-me possível distinguir dois tipos de pessoas
– aquelas às quais a doença, felizmente, não chegou, e aquelas às quais a doença chegou e, sem pedir licença,
virou a vida do avesso.
Por um lado, observe-se a realidade dos que vivem a pandemia “à distância”. Tal como todos, estes foram pri-
vados das vidas às quais estavam acostumados. Em muitos casos, talvez a maioria, viram-se impedidos de se
deslocarem para os locais de trabalho ou para os estabelecimentos de ensino; viram-se privados de viajar dentro
ou fora do seu próprio país; viram-se carentes de afetos e da proximidade da família e amigos... Mas, também den-
tro deste grupo, encontro duas situações distintas: aqueles que, quando a pandemia for declarada como “extinta”,
podem retomar os seus hábitos e rotinas, com naturalidade, e aqueles que, apesar de não terem sido infetados,
sofreram os severos danos colaterais. É importante relembrar a significante percentagem de pessoas que perdeu
os empregos, que perdeu as suas casas e que não encontrou (nem encontra) forma de sustentar as suas famílias.
Estes são alguns dos casos que, à semelhança de um vidro partido, por muita fita-cola e apoios sociais que pos-
sam ter, nunca voltarão a ser os mesmos.
Por outro lado, as pessoas como eu, que sentiram e sentem, na pele, a destruição e o medo que vem de mãos
dadas com esta doença e somos os que, apesar da tristeza associada ao confinamento, melhor compreendem a
falta de alternativas e a sua importância. Quer a doença tenha sido ligeira quer tenha sido mais grave, é transversal
o sentimento de incerteza. Incerteza porque não se sabe o que irá acontecer no dia seguinte, não se sabe se, na
manhã seguinte, ao acordar, o maldito vírus se terá ido embora ou se, durante a noite, se terá de ir para as urgên-
cias sobrelotadas de um hospital porque não se consegue respirar. Apesar de não ter sido eu a vítima direta do
vírus, fui, e sou, aquela que chamou a ambulância, aquela que sentiu o pânico de não conseguir ajudar, de não
saber se haveria uma cama disponível no hospital e de não saber se o veria outra vez... Foram certamente os pio-
res momentos que alguma vez irei vivenciar, vi-me forçada a crescer de uma forma que não aconselho a ninguém.
Efetivamente, não existem dois casos iguais, mas há a certeza de que, quando o pesadelo passar (se passar),
nada voltará a ser igual. São testemunhos como o de Daniel Sampaio, dado ao jornal Expresso (dia 17 de abril de
2021), que ajudam os demais a perceber a realidade que se vive nos hospitais, quer seja nos cuidados intensivos,
quer nas enfermarias, quer no espaço físico, quer no espaço humano. Note-se que são centenas os casos que se
assemelham a este testemunho e é fundamental realçar que, a cada pessoa infetada e doente, corresponde uma
família que está também “doente”, em confinamento, em casa, a esperar impacientemente por qualquer tipo de
notícia dos seus entes queridos. A cada dia que passava, a única coisa que desejávamos era um telefonema do
hospital a dizer: “Já passou o pior, está a melhorar!”, mas, antes de ouvir esse telefonema, foram dezenas os dias
em que ouvi dizerem: “Já não há nada a fazer... Ele não está a reagir aos tratamentos...”.
Uns cá, outros lá... todavia, todos concordamos que a Covid-19 se revela como uma das doenças mais perver-
sas e desumanas que presenciámos e, mesmo quando acaba, deixa sequelas inimagináveis, meses incontáveis de
recuperação. Mesmo no regresso a casa, o medo e o trauma continuam presentes lá no fundo mas, felizmente,
graças à espantosa educação que me deram, tive e tenho a coragem de nunca perder a esperança.
Em suma, é evidente que a pandemia da Covid-19 e o confinamento, de uma forma ou de outra, trouxeram
muita mágoa e amargura a toda a sociedade portuguesa e mundial – uns cá, outros lá... A questão que fica é a
seguinte: quando tudo passar, a sociedade voltará a viver?
Anónimo
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