Page 23 - Cassandra
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C — Desculpa, manter esta ilusão apenas nos tornará
erta manhã, ao acordar de sonhos inquietos, Fran-
cisco viu-se acompanhado de uma linda mulher de cabelos insanos! É melhor para os dois – disse Francisco enquanto
loiros, que dormia com a cabeça apoiada no seu peito. saía de casa, evitando olhar para trás, sem se querer aper-
"Quem será esta mulher?" — pensou. Isto não po- ceber do dano emocional causado à mulher que tanto o
deria ser um sonho, a sua mesa de cabeceira estava exata- desejava.
mente como a costumava deixar, testou-se várias vezes Francisco, perdido nos seus pensamentos, nem
mordendo o seu dedo, verificando que sentia dor. Pensou reparou que ia chocar contra a porta; caiu prostrado no
também que esta situação poderia ser a consequência de chão e olhou para trás, vendo uma mulher que o fitava
uma noite boémia já esquecida pela manhã, mas descar- com olhos vazios, sem vida, inundados de lágrimas de
tou tal ideia ao verificar que, no lado da mesa de cabeceira desespero. Aí, uma ideia iluminou-o.
da mulher, estavam fotos do casal e de dois idosos que E a partir desse momento, Francisco viveu (ou não
nunca teria visto e que assumiu serem os pais da mulher. viveu) para que ela pudesse viver.
A mulher vivia com ele.
Depois das suas tentativas fúteis de se tentar recor-
dar da mulher na sua cama, Francisco decidiu acordá-la e
resolver este assunto:
— Olá? — disse Francisco com uma voz claramente
nervosa.
— Bom dia — disse a mulher com um enorme sorri-
so estampado na cara, já habitual — Está tudo bem? —
questionou, apercebendo-se do nervosismo de Francisco.
— Quem és tu? Porque é que estás na minha casa?
— interrogou.
— Francisco, não sejas parvo!
O olhar da mulher alterou-se gradualmente ao
aperceber-se de que, de facto, Francisco não estava a reco-
nhecê-la, a felicidade dos seus olhos foi-se desvanecendo.
Fitaram-se mutuamente durante longos momentos sem
qualquer emoção para além da confusão nas suas faces,
que foi dando lugar a sofrimento.
Nos dias seguintes, a mulher fez de tudo para ten-
tar recordar Francisco do seu passado comum: levou-o ao
psicólogo e ao psiquiatra, ao padre e ao exorcista, a tera-
peutas de casal e a gurus do amor, e até a visitar os pais
dela; tudo sem sucesso algum.
Por cada tentativa falhada, o estado de depressão
da mulher agravava-se; Francisco, por sua vez, ficava cada
vez mais saturado e decidiu confrontá-la:
— É inútil continuar com isto, eu nunca me vou
lembrar da vida que vivemos juntos. Os bons e maus mo-
mentos que tenham havido são algo do passado e temos
de aceitar isso. Portanto, eu vou sair desta casa e conti-
nuar a minha vida, e tu devias tentar fazer o mesmo —
disse Francisco calma e compassivamente.
— Eu não conseguirei viver sem ti, Francisco! Não
me faças isso! – apelou a mulher desesperadamente.
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