Page 65 - Cassandra
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O qualquer forma, agora quem discute nem sou eu nem o
céu está de um azul mediterrâneo, intenso. Obser-
vo uma nuvem, branca como uma noiva em núpcias, que mestre, que é deixado respeitavelmente descansar da via-
é puxada pela brisa. Começa toda uma mancha, e, por gem desde o seu amado Ribatejo. Neste momento, deba-
influência de uma corrente de vento, ou qualquer outro tem Reis e Campos, sobre o mérito das máquinas, do futu-
fenómeno, meteorológico, atmosférico, com certeza de ro, e dos Helénicos (estes do passado). Campos exulta de-
fora do poder da nuvem, fatal como o destino, separa-se masiado, e Reis é demasiado sentencioso, quase parece
em fragmentos. Esses fragmentos divergem por um tem- cristão com todos os seus mandamentos morais.
po, mas acabam por se reagrupar; no fim, a nuvem origi- — Mas, meu amigo, veja! Veja como as luzes elétri-
nal recria-se, sai da minha vista. cas brilham no fundo do café e compreender-me-á! Ouça!
Estou sentado no café A Brazileira, no Chiado, nu- Ouça os sons das engrenagens e perceberá o que digo!
ma mesa junto aos vidros que separam o estabelecimento Que todo esse Horácio, Epicuro, Crisipo e Sócrates que
e as conversas, discussões que se passam lá dentro, entre preza está mais presente que nunca dentro das máqui-
cafés e uísques, de filosofia, poesia e arte, dos problemas e nas… Pois estas são o fruto do futuro brilhante da Huma-
queixumes da Lisboa quotidiana, essa desolação da Huma- nidade, futuro que veio desses mesmos velhos Gregos!
nidade. Gosto de passar a tarde aqui, sozinho com a mi- — Você é um doido, pior do que aqueles sentados
nha breve cigarreira; o sol brilha e o mundo é quente e na Assembleia! Então vai-me dizer que os clássicos são
inspirador. como essas ruidosas máquinas, que o jardim epicurista
Mas hoje não estou sozinho, antes pelo contrário – está no carvão que as alimenta? Os futuristas sonham em
faço parte da mesa com a discussão mais acesa do café. dominar o tempo e destino, e nisso falham! Porque o futu-
Até me admira que os outros fregueses não olhem para ro não é deles, apenas o presente serve ao Homem! Siga o
aqui, a fulminarem-nos com o olhar de curiosidade e pre- antigo ditado, carpe diem, meu amigo!
sunção próprio dos portugueses. Estou rodeado de ami- — Mas Reis, você é que é um tolo… O Binómio de
gos; amigos barulhentos, na verdade. Newton é belo, tão belo quanto a Vénus de Milo. Só que
À minha esquerda, está o meu jovem mestre, Alber- nem você nem ninguém o consegue perceber! Enfim, per-
to Caeiro, que está a visitar a cidade, depois de muita in- ceberiam, se tirassem os narizes desses grossos e poeiren-
sistência nossa. Vê-se que está constrangido e desconfor- tos livros latinos e olhassem em redor! Aí, perceberiam!
tável. É tão calado quanto eu, mal fala, na verdade. Limita- Aí, sentiriam o mundo! Não acha, Mestre?
se a olhar e a ouvir. Como eu, estava a olhar para o exteri- Alberto Caeiro pareceu surpreendido por ser cha-
or. Pergunto-me se terá visto a nuvem e a sua evolução, e mado à conversa, o que não admira porque ele sente-se
o que pensará de tal. Que pergunta ridícula. Não pensa surpreendido com tudo. Olhou para Campos e Reis, e de-
nada, claro! Ele nunca pensa, sorte a sua. pois para mim, antes de falar.
À minha frente, o cosmopolita Álvaro de Campos, — Não conheço nem o binómio de Newton nem
nascido na pacata Tavira para ser educado na atarefada qualquer Vénus do Milo. Ou o Milo que seja de quem essa
Glasgow. É alto e magro e elegante e o seu monóculo por Vénus é. E não percebo porquê o desassossego de discutir
vezes fere-me a vista, pois reflete a luz solar. Cada vez que o mistério do mundo. As máquinas não escondem nada
abre a boca sente-se o perfume do ópio que ele consumiu senão as peças no seu interior, meu amigo. As coisas são
antes de vir ter connosco. Talvez isso explique como está assim, para olhar para elas e estarmos de acordo, Campos.
tão animado e melancólico. Não vejo porquê colocar-lhes algo mais.
Por fim, à minha direita, virado para o café, está o — Bem-dito – afirmou Ricardo Reis, como infantil
moralista do Ricardo Reis. Tem debaixo da mão um qual- pupilo a pensar-se vitorioso e digno da afeição do mestre.
quer livro grosso que trouxe a passear, e na lapela do fato — E você, Ricardo, não teme demais o futuro? Vive
traz um alfinete dourado com o velho escudo monárquico. a vida hoje, mas vive-a por medo da aflição do futuro.
Como gosta ele de se armar em político (estar contra a Afasta-se do Homem e vai para a natureza, como eu, mas
ordem é tão popular, atualmente). é por ter medo do Homem, não amor à natureza. Refugia-
Gostam muito de discutir, esses três, uns com os se nos gregos e romanos há muito mortos por medo de
outros. E comigo também, eu é que não lhes dou troco. De morrer também. Pensa demasiado sobre não pensar. Eis o
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