Page 63 - Cassandra
P. 63
V
iver ou não viver – eis a questão que me exacerba a
debilitação física e mental do resto dos meus dias. Supo-
nho que me tenha perturbado desde o início, quando era
jovem, vigoroso e de cabelo lustroso. Sempre foi algo que
me demarcou dos outros. Para a grande maioria, a escolha
é simples – viver deve ser bom. Para mim, nem tanto.
Agora que o meu fim se aproxima, sou forçado a
fazer tal escolha; sinto a sociedade respirar ofegante no
meu pescoço. Nestes últimos anos, a maior angústia que
algum ser já sofreu tem-me afligido. A cada passo dado, a
morte toma o meu pensamento de assalto; atormenta-me
uma claustrofobia existencial.
Suponho que tenha sido isso que sentiam os meus Mas todos vivemos assim. Todos sonham com o
remotos antepassados. No tempo em que a morte era uma Amanhã. O Amanhã é bom, é calmo. No Amanhã, tudo
inevitabilidade, a conduta ditava a passagem para o Éden existe, não existindo. No Amanhã, não há sonhos – há
ou para o Sheol, para os Campos Elísios ou para o Tárta- realidade. No Amanhã, somos deuses omnipotentes e pa-
ro. Embora hoje saibamos que isso eram apenas sonhos radoxais. No Amanhã, todos podemos conviver; podemos
de loucos ou iluminados, algo de que muitos deles tam- viver, finalmente. Eu gostava de ter vivido no Amanhã.
bém estariam cientes, não quer dizer que esses sonhos Estou demasiado cansado. 111 anos é demasiado
não tenham tido influência; a esperança do paraíso e o tempo; é difícil ter paciência para tantas décadas. Princi-
medo do inferno ensinaram-lhes a comportarem-se. Diz- palmente, quando não se é bom nem a comer nem a ser
se que a era deles foi uma de felicidade. De inocência. De comido.
ambições. De amor. De bondade. A sombra do suicídio visitava-me frequentemente.
Hoje não temos nada disso. Com uma garantia do Muitos ponderaram antes sobre cometer tal atrocidade.
além-vida, sabemos que há um Amanhã, independente- No entanto, ninguém é capaz de fazê-lo; não fomos feitos
mente do nosso Hoje. E é isso, nada mais. As nossas vidas para isso; não nos programaram dessa forma. Diz-se que
resumem-se a isso. Aquilo que somos resume-se a isso. um de nós uma vez conseguiu. Superei várias noites com
No Hoje, ninguém é feliz. Ninguém é inocente. Nin- essa esperança. Suponho que o meu insucesso mostre que
guém tem motivações. Ninguém ama. Ninguém é bom. esta era infundada.
Ninguém sente. Todos vivemos num completo, alcoólico, Como invejo os meus antepassados, o Último Ho-
degradante êxtase. Comer e ser comido – eis a vida do mem… A natureza de ser Além é penosa.
Imortal. Vivemos tão rápido que não chegamos a viver. E Receio que o sol se ponha no Hoje e que o Amanhã
sem a morte que se tema, a vida torna-se uma não-vida, tenha de chegar, independentemente dos meus desejos. Se
um estado temporário de miséria, de vergonha – tenho ao menos eu tivesse nascido no resplandecente Amanhã e
nojo daquilo que vejo, daquilo que faço, daquilo que sou. não no imundo Hoje…
62

