Page 59 - Cassandra
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NADA






                        A M É R I C O   A L V E S





          H                                                    fomos  capazes  de  corresponder,  quanto  mais  retribuir,
              oje acabei com ela. Talvez  ontem, não sei bem. Re-
         cebi o último SMS: “Não consigo viver assim. Tu já não   todas essas esperanças depositadas. A ideia do nada é, por
         me dás atenção.”                                      vezes, algo que me conforta imensamente — um vazio, a
              Ela tinha alguma razão naquilo que dizia — eu real-  ausência de qualquer emoção, de qualquer substância —

         mente  nunca  lhe  tinha  dado  atenção:  eu,  de  facto,  não   talvez por ser mais o meu estado habitual que outra coisa.
         sentia nada por ela. Aliás, não sentia nada, de todo, há já      Do que vi, a vida não tem verdadeiramente um sig-
         algum  tempo.  Hoje  (talvez  ontem)  senti:  calma  e  nada   nificado: tanto quanto sei, a resposta mais plausível para
         mais.                                                 essa pergunta pode muito bem ser saber se deve ser ter-
              Seis meses. Seis meses num harmonioso, silencioso   minada ou não. Talvez o suicídio confira um significado à
         inferno. Seis meses em que nada saiu da minha boca ape-  vida. Talvez o nada seja a única salvação possível para esta
         sar de ela muito falar, mas nada dizer. Seis meses em que   vida de sofrimento que todos levamos. Talvez deva apro-
         nada senti, apesar de ela aparentemente muito ter senti-  fundar essa ideia. Talvez deva ceder. Hoje (talvez amanhã)
         do. Seis meses em que estive alheio a todo o mundo.   penso nisso.
              Ela está morta e nada há a fazer.                      Hoje (talvez ontem) senti o nada. Eu agora pertenço
              Talvez pudesse ter feito algo ontem. Algo que não   -lhe e isso reconforta-me.
         descarregar nela o acumular de seis meses de uma raiva
         desmesurada  que  nem  o  mais  íntimo dos  eus  sabia  que
         encarcerava: mas foi isso que fiz. Ainda assim, ela mere-
         cia. Alguém que ameaça matar-se por causa de uma mera
         relação  falhada  não  merece  de  todo  a  oportunidade  de
         viver. Ela jamais a algum lado se levaria e pior mesmo só
         seria o seu efeito no grande plano das coisas. Ela era um
         inimigo do desenvolvimento, da evolução. Percebo que a

         ideia  do  suicídio  possa  ser  algo  que  ajude  a  atravessar
         muitas noites, mas pensar em pô-la em prática é algo pró-
         prio de uma criatura que não tem qualquer futuro. Aquele
         que não possui uma vontade de poder, uma vontade que
         guie todas as decisões que toma, não consegue viver. Não
         pode viver. Não merece viver.
              Mesmo assim, o ponto de vista dela não é completa-
         mente ilegítimo. De que serve viver uma vida em que na-
         da há para além de sofrimento? De que serve viver uma
         vida  em  que  somos  constantemente  assombrados  pelo
         pensamento de termos sob a nossa responsabilidade uma
         morte? Acima de tudo, uma morte de alguém que confia-
         va em nós, alguém que esperava o melhor de nós, alguém
         que queria o melhor para nós... E nós, simplesmente, não

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