Page 57 - Cassandra
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C                                                  -tava-lhe  plenamente  fora  do  alcance.  Teria  imaginado
                omo  sempre,  Fernando  encontrava-se  no  seu

         quarto com a sua namorada e companheira Ofélia, escre-  algumas vezes como o faria, mas todos os seus planos pa-
         vinhando versos em papéis soltos. Fernando apreciava o   reciam ter um grau de incerteza demasiado grande para

         conforto do seu espaço; este era o único local onde podia   serem  postos  em  prática.  Ofélia,  sempre  muito  transpa-

         desfrutar plenamente da companhia da sua musa, o único   rente,  mostrava  efusivamente  o  seu  entusiasmo  com  os
         local onde ninguém o julgava a si nem à sua companheira   planos  de  Fernando,  acenando  e  sorrindo  enquanto  os

         pelas suas ligeiras diferenças, como acontecia no mundo   ouvia atentamente, e, de seguida, acrescentando um por-
         exterior.                                             menor  que  tornava  tudo  mais  certo;  Ofélia  completava

                                                               Fernando,  como  se  os  pensamentos  de  ambos  tivessem
                Fernando  nunca  percebera  o  motivo  de  tanto
                                                               origem numa só cabeça. No entanto, para tristeza do ca-
         espanto cada vez que ele mencionava a sua Calíope. Esta-
                                                               sal,  surgiam  obstáculos  constantes  que  os  impediam  de
         va certamente ciente daquilo que os distinguia, mas conti-
                                                               atingir o seu refúgio divino permanente.
         nuava a questionar-se sobre o motivo de tanta exclusão no
         seio de um país tão liberal, que abandonara os velhos cos-    Certo dia, após o almoço, Fernando viu-se ilumi-

         tumes há tanto tempo. Nunca percebera também a deci-  nado pela visão da saída daquele seu mundo de infelicida-
         são dos seus pais de ignorarem completamente a sua exis-  de; a lâmina da chave para o seu retiro divino brilhava à

         tência; certamente não os deixaria entrar no seu refúgio,   luz do sol da sua janela, como se algo ou alguém a apon-
         mas gostaria de ter o apoio deles nas suas decisões e de os   tassem, para que ele não tivesse dúvidas da sua ida para

         ver  periodicamente.  Não  percebendo  o  motivo  para  tal   tal retiro. Fernando, procurando coragem, fitou Ofélia até
         rejeição por parte da sua família e da sociedade em geral,   as suas essências se fundirem numa só. Pegaram na chave

         decidira refugiar-se com Ofélia no seu cubículo arrendado;   e abriram as portas para o seu paraíso, enquanto recita-

         era pequeno, mas era o seu isolamento do mundo e o úni-  vam:
         co local onde a sua felicidade e amor podiam prosperar.
                                                                       “Morrer —  dormir,  nada  mais;  e  dizer que  pelo
                Fernando passava muito do seu tempo a refletir   sono se findam as dores, como os mil abalos inerentes à

         sobre como encontrar um mundo maior que o seu cubícu-  carne — é a conclusão que devemos buscar.”

         lo para ser feliz e aceite com o seu amor, e, até então, ape-
                                                                       Abandonaram então o nosso mundo aqueles que
         nas teria encontrado uma – suicídio – mas tal solução es
                                                               nunca nele viveram.

                                                                       Ao ouvir um tilintar de talheres, proveniente de

                                                               um dos quartos, os enfermeiros do hospício dirigiram-se à

                                                               origem do ruído, deparando-se com uma cena sangrenta:

                                                               Fernando,  jazia sozinho no chão com o pescoço rasgado e

                                                               sangue a jorrar, formando uma poça, e, no centro desta, a

                                                               chave do paraíso.








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