Page 55 - Cassandra
P. 55
D
eus está morto e os russos mataram-No.
Encontro-me no topo de uma colina, debruçado sobre o que um dia foi o Éden, choro descontroladamente. Eles ma-
taram o meu Deus, eles mataram o Grande Ariano!
Admiro as ruínas de Berlim como que procurando por um sinal d’Ele que me oriente. Mas sei que tal sinal não vem; o
meu Deus está morto e permanecerá morto para sempre. Os hereges tomam posse do Reichstag e esvoaçam na cidade as
suas bandeiras vermelhas. Deitam abaixo as figuras do antigo regime, grandes águias de pedra jazem quebradas no chão,
águias estas que jamais voltarão a voar.
A gravidade desta derrota e a queda da Alemanha fazem-me refletir. É a prova concreta de que os ensinamentos do
profeta desta religião política são e sempre foram falaciosos. Verdadeiros deuses não perdem guerras de Homens.
A confusão do outrora povo escolhido é evidente. Vejo pessoas com gargantas cortadas e nós ao pescoço – pobres
coitados que não conseguem suportar a ideia do ateísmo. Há também outros que se tentam adaptar; observo um grupo de
rapazes que ainda há uns dias treinavam para lutar pelo nosso Deus a profanar um busto do Profeta com desenhos fálicos e
frases agramaticais sobre a Sua pessoa.
Penso no quão demoníacos estes hereges são. São criaturas de hábitos animalescos, terríveis e incivilizados: durante a
nossa cruzada responderam a qualquer tentativa de conversão com tiros. Vejo-os agora, vitoriosos, a divertirem-se violando
as nossas mulheres e assediando, para seu entretenimento, os sobreviventes com quem se deparam.
Agora fico condenado a pensar no que significa viver num mundo sem Ele. Saber que tudo em que acreditava estava
errado. Serão agora os semitas boas pessoas? Recuso-me a acreditar em tal coisa! Será ilegítimo agora queimar livros co-
munistas na fogueira? Terão os incapacitados direito à vida? Poderão os homossexuais casar? Já não saberei dizer; Ele era a
minha resposta a todas as perguntas, era da boca escondida pelo Seu bigode ímpar que saía a Boa Nova. A Sua simples ima-
gem esclarecia-me qualquer dúvida.
Ouvem-se sussurros esperançosos; diz-se que, depois da violação do bunker que serviu como túmulo para o Nosso
Profeta, não Lhe foi encontrado o corpo. Talvez, à semelhança do profeta dos cristãos, o Seu corpo tenha desaparecido para
retornar ao fim do terceiro dia, tendo vencido a Morte com a ajuda dos seus soldados caídos.
Sempre fui um soldado fiel e não será agora que desertarei. Se existe a mais ínfima possibilidade de lutar a Seu lado
numa última batalha, então a Ele me juntarei; ergo a minha hóstia de cianeto e, num último suspiro, ingiro-a.
Depois disto, nada mais que vazio. Toda a esperança está perdida. O Terceiro Templo caiu.
54

