Page 61 - Cassandra
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A                                                          Virei-me. Atrás de mim encontrava-se o derradeiro
              cordei. Gentilmente, um clarão forçara-me a abrir
         os olhos. Não percebia como era possível tudo aquilo estar   dos edifícios. No coração da cidade, erguia-se a Fortaleza,
         a  acontecer  –  eu  pertencia  ao  nada.  Estava  numa  pura   profana como Babel, titânica como o Coliseu, massiva co-
         sincronia com ele. Eu era o nada. Mas agora, eu era força-  mo Gizé – o Cofre dos Céus. O Cofre encerrava o único
         do a ver. A ver que o nada que tanto me reconfortava era,   capaz de me amparar, o Altíssimo, O Todo-Poderoso, cria-
         na verdade, tudo.                                     dor eterno dos Céus e da Terra, o Alfa e o Ómega.

              Sentia vento a correr-me os cabelos. Ouvia risos de    Caminhei durante dias até lá chegar.
         crianças. Eram detestáveis. Diante de mim encontrava-se     Finalmente, ultrapassei as últimas portas para en-
         aquilo  que  todos  aqueles  que  já  haviam  vivido,  haviam   trar no Sacrário.
         sonhado – os Campos Elísios, os Campos de Junco, a Va-      Ao contrário da cidade imaculadamente limpa, de-
         lhalla, o harém das 72 virgens, o Eldorado descoberto, a   parei-me  com  o  mais  barbárico  dos  cenários.  No  trono
         Atlântida  renascida  da  Cimopoleia,  o  Éden  replantado  –   divino, não se sentava Deus. Sentava-se, de perna cruzada,
         aquele era o Paraíso.                                 o  maior  dos  Anticristos,  o  Além-Homem,  Friedrich  Nie-
              Apesar do de o conceito poder agradar a todos, em   tzsche.  Disse-me:  “Deus  está  morto  e  nós  matámo-lo.
         mim, despertava os mais íntimos sentimentos de escárnio.   Vem,  meu  irmão,  banqueteemo-nos  com  o  seu  sangue.”
         Eu queria sentir o nada outra vez. Decidi, então, ver o que   Eu fui e bebi do Santo Graal.
         poderia ser feito. Lestamente, avancei.
              O chão  que  pisava  era  verde,  o  verde  mais verde
         que alguma vez vira; a relva aparentava ter sido acabada
         de cortar, mas tinha perfeita noção de que ela se mantinha
         eternamente assim. Percorria uma larga avenida, ladeada
         por edifícios feitos do mais puro e brilhante ouro; cheguei-
         me perto de um e vi o meu reflexo: nunca antes me vira
         tão perfeitamente – era uma criatura profundamente im-
         perfeita, fraca, corcunda e esfomeada. Agarrei-me à espe-
         rança de que o Deus que tinha criado tudo isto não fosse
         feito à minha imagem.
              Ao fundo da avenida, erguia-se imponente, passível
         de ser idolatrada, tal Osíris, uma estátua. A seus pés, uma
         multidão  estava  concentrada.  Aproximei-me  para  perce-

         ber qual o motivo desta reunião, descobrir porque rezari-
         am àquele deus – haveria hereges no Paraíso? Isso expli-
         caria por que razão estava eu também aqui.
              A multidão de atlantes encontrava-se no seu estado
         original, tal como Deus as tinha colocado no mundo, sem
         roupas;  reparei  que  eu  também  me  encontrava  em  tal
         situação. A multidão jogava croquet; sorrisos rasgavam o
         rosto de todos eles; uma festa de chá decorria simultanea-
         mente.
              Finalmente aproximei-me da estátua. Vi a seus pés
         escrito:  “Onde  há  uma  vontade  forte,  não  pode  haver
         grandes dificuldades”. Era Maquiavel que se erguia peran-
         te mim. Soube mais tarde que onze mais estátuas e onze
         mais  citações  se  elevavam  pela  cidade:  Nietzsche,  Marx,
         Aristóteles,  Locke,  Spinoza,  Bacon,  Crisipo,  Stuart  Mill,
         More, Huxley e Jesus Cristo.


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