Page 66 - Cassandra
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seu problema. Nunca deixe o futuro perturbá-lo. Encontrá nhia, já que me encontrava sozinho, ou assim aparentava.
-lo-á, se tiver de ser, com as mesmas armas de razão (e Verificou que eu não esperava ninguém. Era muito amá-
observação) que tem no presente. Porquê pensar nisso? vel, convém mencionar.
Ferido (algo muito estranho num Estoico), Ricardo Chamava-se Almada Negreiros. Era um artista que
Reis esvaziou o seu copo. recentemente tinha sido alvo de uma crítica minha pela
— Rejeita os clássicos enquanto cita Marco Auré- sua exposição inaugural. Agradeceu-me, vez após vez, pela
lio… crítica feita, comentou na sabedoria e amabilidade das
Observando que já não havia um único copo cheio, minhas palavras, do olho que eu tinha para a arte… Falou
assinalei que nos trouxessem mais quatro bebidas. O ho- durante muito tempo. Enquanto ele falava, eu ia distraida-
mem fez-me uma cara estranha, como se tivesse pedido mente rabiscando num guardanapo. Quando dei por mim,
quatro copos estando sozinho, um verdadeiro alcoólatra. tinha escrito a palavra “ORPHEU” sem sequer perceber o
Então não via que eu tinha de dar de beber a quatro? porquê de tal.
Enquanto se preparavam as bebidas, discutiram-se Olhei para o jovem Almada, que continuava a falar
outros assuntos. Campos falou, entre a melancolia e o animadamente. Não percebendo muito bem porquê, esta-
êxtase, do que tinha visto nos estranhos reinos do Oriente. va a começar a gostar daquele novo amigo. Embora tives-
Parecia estar algo desanimado, tendo perdido o louvor se alguma estúpida teimosia de juventude, dizia muita
dado à vida com o sermão. E talvez fosse também do ópio, coisa acertada. Mas estava errado acerca de algo.
cujo efeito (e odor) desaparecia. Ricardo Reis continuou a Eu não estava sozinho. Nunca estive sozinho, e
criticar a política republicana do governo, as suas engre- penso nunca vir a estar sozinho no mundo. Sou, como a
nagens e geringonças. Alberto Caeiro observou uma mos- nuvem, o coletivo feito unidade.
ca que, aflita, tentava sair do estabelecimento, mas apenas
encontrava vidro límpido. Talvez revendo-se nela.
Finalmente chegavam as bebidas. Enquanto agra-
decia ao rapaz que as trouxe, reparei num outro rapaz que
me observava, com intenção de ser discreto, enquanto se
sentava ao balcão do outro lado do café. Passei as bebidas,
mas rapidamente me vi com problemas. Caeiro recusou a
sua; demasiado álcool deturpava a visão. Reis também a
recusou; talvez tentasse voltar às boas graças do mestre,
talvez fosse verdadeiro o seu intuito epicurista de não se
deixar levar por tais prazeres inferiores. Quem aceitou de
bom grado foi Campos, e lembrei-me então que este,
quando bêbado, em vez de se alegrar, entristece, e torna-
se uma figura de piedade e transtorno emocional.
O efeito foi rápido; mal tinha engolido de um trago
o líquido e já estava Álvaro de Campos a trazer à mesa um
assunto constantemente mencionado – o triste destino da
sua família. Estavam todos mortos, era sabido. Na verda-
de, éramos maioritariamente órfãos à mesa, mas quem
mais com isso sofria era Campos e eu, sem dúvida. Parti-
lhávamos muita nostalgia da infância, e era um assunto
demasiado triste para descrever aqui. Basta dizer que verti
uma lágrima muito salgada.
A nossa conversa foi interrompida com a chegada
de um jovem; o jovem que me tinha observado desde o
balcão. Ele pediu licença para se sentar e fazer-me compa-
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