Page 16 - ARCANO XIII
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sua boca tentou dizer algo sem que seu
cérebro ordenasse, mas da garganta saiu
apenas sangue vomitado num engasgo que
o fez voltar os olhos a si mesmo pela primeira
vez desde que ali chegara. e só então notou
que seus sapatos estavam lustrosos mesmo
após séculos de caminhadas e que o terno
feito sob medida seguindo modelo da pátria
de seu avô ainda reluzia e buscou nos bolsos
pela carteira, chaves, documentos, sem achar
nada e reparou na camisa de um outrora
branco imaculado agora rasgada no ventre e
na mancha vermelha circundando o rasgo e
apalpou a barriga de onde escapavam tripas e
sentiu um cheiro forte de morte que vinha não
sei de onde e lentamente ergueu a cabeça ao
homem a sua frente que já não picava fumo
nem tinha a cabeça baixa dos humildes e o
fitava com olhos incandescentes e frios de
dentro de um rosto negro riscado com lábios
entreabertos por onde saia a língua que
lambia a lâmina que pingava sangue que
era seu e que fez seu pensamento retornar à
sua própria boca e sentiu secura da caatinga
na goela e um oco na moleira fazendo eco
fosse a cabeça cabaça ante o aço tenso de
um berimbau... – inusitadas palavras em
seu pensamento como a sensação que elas
descreviam, mas não lhe ocorreu pensar a
respeito, carecia desesperadamente um copo
d’água, como se disso dependesse a vida.
ANAMNESE