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ou quando, sob a máscara de um touro, um deus puder raptar virgens,
quando a própria deusa Atenas se mostrar de repente, enquanto conduz
pelos mercados de Atenas uma bela parelha, em companhia de Pisistrato 45
— era no que acreditava o honesto ateniense — então, a todo o momento,
como no sonho, tudo é possível, e a natureza inteira é uma provoca o
homem como se fosse a mascarada dos deuses que se entretivessem num
jogo de mistificar os homens sob todas as formas.
Mas o próprio homem tem uma tendência invencível para se deixar
enganar e fica como que ébrio de felicidade quando o rapsodo lhe narra,
como se fossem verdadeiros, contos épicos ou quando o ator desempenha
em cena o papel de rei de uma forma mais real do que acontece na
realidade. O intelecto, esse mestre da dissimulação, é livre e libertado de
seu trabalho de escravo tanto tempo quanto possa enganar sem prejuízo e
celebra então suas saturnais. Nunca está mais exuberante, mais rico, mais
orgulhoso, mais ágil ou mais temerário: com um prazer criador, lança as
metáforas em confusão e desloca os limites das abstrações, de tal forma
que, por exemplo, designa a corrente como o caminho movediço que leva o
homem para onde vai habitualmente. Atirou para bem longe o sinal da
servidão: normalmente ocupado com a morna atividade de mostrar o
caminho e os instrumentos a um pobre indivíduo que aspira à existência e,
como um servidor, buscando presas e despojos para seu dono,
transformou-se agora em dono e pode permitir-se apagar do rosto a
expressão da indigência. Tudo o que doravante faz, traz em si, por
comparação com a ação passada, a dissimulação, como sua ação anterior
trazia em si a distorção. Copia a vida humana, toma-a, contudo, por uma
coisa boa e aparenta estar satisfeito com ela.
Essa armação e essas pranchas monstruosas dos conceitos aos quais
o necessitado se agarra, durante toda a vida, para se salvar, nada mais é
para o intelecto libertado que um andaime e um brinquedo para suas obras
mais audaciosas: e quando o quebra, o faz em pedaços, o recompõe
ironicamente, acoplando o que é mais diverso, separando o que é mais
semelhante, manifestando assim que não tem necessidade desse expediente
da indigência e que já não é conduzido por conceitos, mas por intuições.
Dessas intuições, não há nenhum caminho regular que vá dar ao país dos
45 Pisistrato (600-527 a.C.), tirano da cidade-estado de Atenas, introduziu reformas radicais no Estado,
impulsionando o progresso e conquistando grande influência sobre os Estados vizinhos (NT).