Page 20 - As Viagens de Gulliver
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Quando me viram tranqüilo, deixaram de me assediar com flechas; mas,
pelo rumor que ouvi, compreendi que o seu número aumentava
consideravelmente e, perto de duas toesas, defronte do meu ouvido esquerdo,
senti um ruído durante mais de uma hora como de pessoas que trabalhavam. Por
fim, voltando um pouco a cabeça para esse lado, tanto quanto mo permitiam as
estacas e os cordões, vi um tablado erguido palmo e meio do chão, onde quatro
desses homenzinhos poderiam caber, e uma escada que lhe dava acesso; daí, um
deles, que parecia ser pessoa de importância, dirigiu-me um longo discurso, de
que não percebi palavra. Antes de principiar, exclamou três vezes: Langro Dehul
san. Estas palavras foram, em seguida, repetidas e explicadas por sinais para que
eu as compreendesse. Depois, cinqüenta homens avançaram e cortaram os
cordões que seguravam a parte esquerda da minha cabeça, o que deu ensejo a
que eu pudesse movê-la livremente para a direita e observar a cara e o gesto
daquele que falava. Pareceu-me ser de meia idade e, de estatura maior do que
os três que o acompanhavam, um dos quais, que tinha o aspecto de pajem, lhe
segurava a cauda da beca, enquanto os outros dois permaneciam de pé, aos
lados, para o amparar. Pareceu-me bom orador e conjecturei que, segundo as
regras da arte, misturava na sua arenga períodos cheios de ameaças e de
promessas. Respondi em poucas palavras, ou, melhor exprimindo, por um
pequeno número de sinais, mas de um modo cheio de submissão, erguendo a
mão esquerda e os dois olhos ao sol, como que a tomá-lo por testemunha de que
morria de fome, pois já não comia havia algum tempo. O meu apetite era, de
fato, tão violento, que não pude deixar de fazer ver a minha impaciência, (talvez
contra os preceitos da civilidade), levando várias vezes a mão à boca para dar a
perceber que carecia de alimento.